A decisão do governo e da CBF de promover o Jogo da Paz entre o Brasil e Haiti gerou reações polêmicas. A atitude foi considerada positiva e encarada como um gesto de solidariedade pela maioria dos brasileiros, mas não faltaram os que se posicionaram contra a idéia. “É a expressão da política externa como política de espetáculo”, alfinetou Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores nos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Mas quem acompanhou a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho e companhia à capital do país, Porto Príncipe, na quarta-feira 18, constatou que a alegria e o furacão de emoções levados pelos craques ao povo do Haiti, o país mais miserável da América e um dos mais carentes do planeta, compensaram o desgaste físico, os riscos e até o desgaste para enfrentar as críticas. O que se viu foi uma demonstração ensandecida de paixão por Ronaldo e os craques brasileiros, algo comparável, sem exageros, à comoção gerada no Brasil no enterro do piloto Ayrton Senna. Se observar a devoção dos brasileiros aos seus ídolos nas ruas já é emocionante, testemunhar mais de 150 mil habitantes de uma ex-colônia francesa do Caribe em estado de euforia absoluta, gritando “Ronaldô”, berrando frases em dialeto creole e saudando os craques brasileiros como se fossem os últimos heróis de suas vidas. “Se alguém ainda tinha dúvida em relação à validade desta viagem, deve ter se convencido diante dessas imagens”, disse Carlos Alberto Parreira ao final da goleada de seis a zero para o Brasil. “Na próxima vez que um de vocês (jornalistas) me perguntar qual a emoção mais forte que vivi no futebol, direi foi esta. E olha que todos sabem que já vivi muitas”, completou o técnico da Seleção.

A tarde emocionante na capital do Haiti serviu para dar dimensões concretas à tão divulgada força do futebol brasileiro. Após o desembarque, jogadores e comissão técnica foram distribuídos por sete blindados urutus das Nações Unidas. Ronaldo Fenômeno, o mais festejado, estava com o lateral Roberto Carlos no terceiro deles. A reportagem de ISTOÉ acompanhou a festa num caminhão colocado no início da fila. Num país que teve quase todas as suas árvores cortadas para serem usadas como lenha, quase 40 graus nos termômetros e a falta de brisa produziam um calor quase insuportável. Mesmo assim, nos momentos em que o comboio diminuía a velocidade ou parava, as pessoas ignoravam a temperatura das chapas de ferro sob o sol e se atiravam sobre os blindados, na tentativa de tocar os jogadores. Muitas delas estavam sem camisa. O diretor técnico Zagallo autografava até dinheiro. Árvores, telhados e muros estavam lotados de gente com cartazes, fotos de jogadores e bandeiras brasileiras de plástico. Muitas casas tinham a fachada pintada de verde e amarelo.

De nada adiantava avisar que “Ronaldô” estava no terceiro blindado e não no veículo usado por ISTOÉ. Aos pulos, os haitianos se aproximavam de qualquer coisa que lembrasse o Brasil e berravam pelo craque, mais popular no país do que Jesus Cristo de acordo com uma pesquisa divulgada dias atrás pela revista britânica The Economist. Muitos se ajoelhavam, apertavam os braços no peito e, em seguida, mandavam beijos. “This is amazing, this is amazing (Isso é comovente)”, repetia, em prantos, a repórter Hannah Hennessy, da rede britânica BBC, um dos mais de mil jornalistas estrangeiros credenciados para o jogo. “Rapaz, sou treinado para controlar minhas emoções, mais isso aqui não está sendo fácil. Dá um nó na garganta”, admitiu o tenente-coronel Carlos Aversa, um dos 1,2 mil soldados brasileiros que compõem a missão de paz da ONU no país. O trajeto entre o aeroporto e o estádio Sylvio Cator, de cerca de 15 quilômetros, foi percorrido em mais de uma hora. Em meio à emoção, alguns brasileiros brincavam: “Se o Brasil tomar um gol, eles vão acabar com o jogo.”

Torcida para os dois times – O jogo foi visto por 11 mil privilegiados com a possibilidade de pagar 250 gourdes (cerca de R$ 20) por um ingresso e por dois mil estudantes e convidados que receberam as entradas de graça. O preço da entrada equivale a uma semana de salário médio dos 20% de haitianos que ainda são remunerados para fazer alguma coisa. À multidão que fez a festa nas ruas na ida e na volta do comboio, restou assistir à partida numa das 50 tevês de 29 polegadas espalhadas por orfanatos, escolas e creches e em outras instaladas em bares. Nas arquibancadas, mais reações curiosas. Quando o Brasil partia para o ataque, os haitianos incentivavam. Os zagueiros da equipe local cortavam a jogada e também recebiam apoio, seguido dos gritos de “Haiti, Haiti”. Chegaram a reclamar timidamente quando um haitiano caiu na área da Seleção, mas o juiz, o brasileiro Paulo César de Oliveira, não deu o pênalti. Comemoraram o primeiro dos seis gols brasileiros, de Roger, e fizeram uma festa ainda maior no segundo, um golaço de Ronaldinho Gaúcho. Após o terceiro gol, todos passaram a torcer por um gol do Haiti, inclusive Lula e os jornalistas brasileiros. Na véspera do jogo, ainda na República Dominicana, onde a Seleção e a equipe do governo se hospedaram, Lula ganhou um par de chuteiras douradas de Ronaldo e reforçou o pedido para os brasileiros “não fazerem muitos gols” nos haitianos. Teve que se contentar apenas com as chuteiras, que, de acordo com o craque, “já estava indo com gol”. O governo local ofereceu US$ 1 mil para quem fizesse o primeiro gol no Brasil e US$ 500 ao autor do segundo. Em vão. “Seria interessante se eles marcassem um gol, mas não dá para administrar isso dentro de campo, fazer concessões, facilitar, num jogo em que os brasileiros, acima de tudo, precisam mostrar respeito aos haitianos”, opina o presidente da CBF, Ricardo Teixeira.

A devoção dos haitianos por futebol é ainda mais surpreendente quando se sabe que o esporte predileto de todos os vizinhos caribenhos é o beisebol. A coisa teria começado com duas visitas de Pelé ao país nos anos 70. O que espanta é a intensidade da paixão. O comentarista esportivo Pierre Andre Rigaud, haitiano que vive em Miami, conta que, após o jogo em que o Brasil perdeu para a Argentina por 1 a 0, na Copa de 1990, na Itália, com um gol de Caniggia, um haitiano se matou com um tiro na cabeça e outro foi parar no hospital após ter se atirado embaixo de um carro. Após a vitória sobre os argentinos nos pênaltis, na última Copa América, os haitianos comemoraram nas ruas como se fosse um triunfo do país. Centenas deles cercaram um comboio de soldados brasileiros que voltava de uma missão no interior e subiram nos blindados e carros de transporte de tropas para comemorar. Foram retirados com cuidado pelos boinas azuis. Mas, não satisfeitos, esmurraram o portão após a entrada das tropas na base próxima ao aeroporto. “Nós tínhamos retirado a bandeira brasileira do mastro porque ela estava muito desfiada”, conta o tenente-coronel Aversa. “Eles imploraram por uma nova bandeira no mastro. Não teve jeito. Colocamos uma outra, menor, eles ficaram gritando embaixo dela a noite toda”, lembra o militar.

Nem nas piores favelas brasileiras o ambiente é tão corroído como o da maioria das comunidades de Porto Príncipe. “A capital haitiana é uma verdadeira sucursal do inferno”, resumiu o editor de Internacional de ISTOÉ, Cláudio Camargo, em reportagem publicada há três semanas, após visitar a cidade com as tropas brasileiras. O calor e o cheiro de lixo são insuportáveis. Não existe água encanada nem esgoto para 90% da população, o que transforma a cidade numa espécie de cloaca a céu aberto. A taxa de desemprego bate nos 80% da força de trabalho e metade da população do país é analfabeta. A miséria atinge seu ponto mais chocante nas feiras do bairro de Bel Air, nas proximidades do porto, onde comida, roupas e outros objetos são vendidos ou trocados em meio a toneladas de detritos, riachos contaminados e cursos de esgoto. O que sobrou de 30 anos de ditadura liderada por François Duvalier, o Papa Doc, e por seu filho Jean-Claude, o baby Doc, atualmente exilado na Europa, foi arrasado pelas gerações políticas seguintes. O ex-padre católico esquerdista Jean-Bertrand Aristide foi deposto pela segunda vez no último dia 29 de fevereiro. Por tudo isso, o grande ponto positivo da missão, que merece ser reconhecido, foi o de levar alegria a um país carente de tudo e a um povo que precisa recomeçar do zero.