i51727.jpg

A colonização confere a quem “descobre” a propriedade sobre a descoberta. Com essa prerrogativa, portugueses se apropriaram do Brasil, espanhóis, da América Latina e franceses, alemães e ingleses saquearam a África. A lógica se estendeu aos patrimônios históricos e objetos de arte. Durante anos, gregos, italianos e egípcios viram grande parte de suas peças serem transportadas para museus da Europa e dos Estados Unidos. Até meados do século passado, pouco se podia fazer, porque não havia uma legislação internacional específica sobre o tema. Desde a assinatura de convenções internacionais que versam sobre a propriedade das peças arqueológicas, diversos países entraram na luta por suas relíquias. Entre os insatisfeitos, está o Peru, que briga pelos tesouros de Machu Picchu, um dos maiores sítios arqueológicos do mundo. Os objetos estão sob tutela da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, desde 1912.

As peças do Machu Picchu foram levadas pelos americanos quando o professor de Yale Hiram Bingham encontrou as ruínas em expedições financiadas pela instituição acadêmica. Na época, o pesquisador levou jóias, 173 esqueletos, 350 estátuas de prata e jarras, 900 exemplares de mamíferos, 700 aves, 20 cobras e dez largatixas. No mesmo ano, o governo peruano concedeu a Bingham o direito de promover escavações até 1º de dezembro e levar tudo o que encontrasse, devolvendo as peças repetidas. Em 1914, um novo acordo determinou que tudo que fosse achado a partir daquela data fosse devolvido no período máximo de 18 meses (as escavações continuaram até 1915). Até hoje, o Peru aguarda o cumprimento da norma.

“São dois interesses em paralelo. O dos países que têm o direito sobre as peças e o daqueles que dependem delas para manter as verbas de pesquisas e o lucro com as exibições nos museus”, analisa o arqueólogo Álvaro Allegrette, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Yale detém 46 mil objetos arqueológicos de Machu Picchu e exibe 350 deles na exposição do Peabody Museum of Natural History, que já recebeu 1,2 milhão de visitantes e vende pôsteres, catálogos, postais e réplicas das relíquias na loja de souvenirs.

Em meados da década de 90, desde que o Peru decidiu brigar pelo patrimônio, a universidade americana propõe uma série de acordos. Em todos, estão previstas apenas a devolução das 350 peças da exposição, sob o argumento de que as demais ainda não foram estudadas. Na tentativa mais recente, de setembro de 2007, Yale ainda condiciona a devolução à construção de um museu e um centro de pesquisa em Machu Picchu – que não tem prazo para sair do papel – e requer a posse das demais peças por mais 99 anos. “É muito tempo, não há justificativa para isso. Dizer que não devolvem para preservar ou investigar o objeto é subestimar a capacidade dos profissionais e do povo no Peru, que têm o direito legítimo sobre o material”, afirma Márcia Arcuri, especialista em arqueologia da América.

Além da retenção por mais um século do acervo, o acordo confere à corte americana a prerrogativa de julgar os futuros impasses entre as partes.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Apesar de garantir que não está legalmente obrigada a devolver as peças ao Peru, Yale faz concessões. A universidade oferece um fundo de US$ 100 mil durante três anos para investigações arqueológicas e propõe uma exibição itinerante por dois anos, com renda revertida para a construção de um centro de investigações e um museu em Machu Picchu, onde os objetos seriam armazenados. “Acreditamos que um acordo mútuo será a melhor opção para todos os envolvidos. Yale fez um trabalho excelente na administração dos achados por quase um século e quer ver a mesma eficiência no Peru”, justificou à ISTOÉ Barbara Shailor, vicepresidente do Departamento de Artes da instituição americana. A defesa de Yale se fundamenta no Código Civil de 1852, do Peru, que sustenta que o direito das peças é de quem as encontra.

O governo latino-americano, por sua vez, resiste a qualquer possibilidade de acordo. “O Peru exige o retorno incondicional de todas as peças agora, sem que Yale coloque condições. Já esperamos demais. A devolução deveria ter ocorrido em 1917”, disse à ISTOÉ Eliane KarpToledo, arqueóloga e expimeira- dama do Peru, esposa do ex-presidente Alejandro Toledo.

A convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de 1972 define algumas regras para a devolução de objetos históricos, mas não trata de casos retroativos. No entanto, a tendência mundial favorece os peruanos. Vários países têm tido sucesso na recuperação de peças arqueológicas, históricas e artísticas. Muitas delas foram saqueadas e vendidas ilegalmente a colecionadores, que fizeram doações ou vendas ilícitas aos museus. Há dois anos, a Itália processou curadores americanos que obtiveram artefatos contrabandeados e conseguiu um lote de 26 antigüidades de volta. Por sua vez, a Etiópia recuperou dos italianos o Obelisco de Axum, monumento de 165 toneladas retirado do país pelo Exército de Benito Mussolini. E a Grécia fez com que o museu J. Paul Getty (EUA) devolvesse uma coroa funerária de ouro, do século IV a.C. “Em casos que remontam aos períodos em que não havia normas internacionais, o ideal é que os países entrem em acordo para a criação de espaços adequados, de gestão integrada, para a exibição das peças”, avalia Márcia Arcuri. O fato é que, enquanto não há um consenso sobre as peças, milhares de peruanos herdeiros da cultura inca continuam sem ter acesso à maior parte do acervo dos seus ancestrais.

i51730.jpg

i51731.jpg


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias