O maior porto abaixo da linha do Equador
parece uma cidade. Centenas de caminhões se enfileiram num congestionamento infernal.
E uma multidão de carregadores transita
entre silos e contêineres espalhados por 12 quilômetros de cais, de onde parte quase um terço das exportações brasileiras. Dentro dos galpões onde ficam as mercadorias apreendidas pela alfândega de Santos, em São Paulo, a luz quase não vinga. O que se vê é poeira acumulada sobre centenas de caixas vindas de todos os cantos do mundo. São tênis Reebok piratas, camisetas e meias Nike falsificadas, computadores da Tailândia, tevês portáteis da China, aparelhos de som e tevês de plasma.

Empilhadas num canto, 22 sacas repletas do que aparenta ser entulho de construção também aguardam um alvará. A carga embarcada por uma empresa química francesa com sede em Paris partiu do porto de Algeciras, na Espanha, e atracou no de Santos em outubro do ano passado. Nos documentos oficiais, dizia-se que o carregamento era de pó de zinco. Junto do manganês, do ferro e do cobre, esse minério é misturado ao adubo para suprir as deficiências de nutrientes do solo e prepará-lo para a agricultura.

A Receita Federal suspeitou das empresas envolvidas na importação. Apreendeu as sacas, avisou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que enviou uma amostra a um laboratório de análises químicas. O resultado foi chocante. Em vez do minério, o que se detectou foi um amontoado de poluentes tóxicos em alta concentração, entre eles chumbo, cádmio e arsênico, os chamados metais pesados, muitos deles relacionados ao aparecimento de doenças como o câncer.

Lavoura tóxica – Resultantes do processo de industrialização, essas substâncias existem na natureza, porém em baixas concentrações. “O chumbo é encontrado no solo em 40 partes por milhão, e, nessa carga, está acima de 100 mil partes por milhão”, conta o químico Elio Lopes dos Santos, engenheiro industrial e mestre em poluição atmosférica. “Esse é o pior caso de contaminação que já vi em 32 anos como especialista. É uma poluição sem fronteiras lançada pelo País inteiro”, diz Santos, que trabalhou 25 anos como técnico da agência ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) na Baixada Santista. O alerta faz sentido, pois sabe-se que nossos portos são verdadeiras peneiras, e boa parte de carga semelhante deve estar circulando por todo o País.

O técnico aposentado fez uma análise dos nutrientes agrícolas contaminados e entregou ao Ministério da Saúde. Seu parecer é de arrepiar. Em 57 páginas, Santos explica que esses micronutrientes agrícolas são geralmente empregados para suprir as deficiências do solo. No caso brasileiro, no entanto, o que se faz é usar lixo de indústrias nacionais e de empresas dos países mais ricos do planeta, que incluem na sucata todo tipo de resíduo. Na lista estão companhias da Espanha, Holanda, Suíça, França e dos Estados Unidos.

O problema mais grave na carga apreendida pela alfândega de Santos é que esses poluentes se acumulam no solo e nos cursos d’água por vários séculos, sem se degradar. Seus efeitos são igualmente nocivos à saúde e ao meio ambiente. Ou seja, as plantas, as hortaliças e mesmo os animais que tiverem contato com esse solo ou essa água contaminada podem intoxicar os seres humanos, o último elo na cadeia alimentar.

Até a década de 1970, o material usado como aditivo pela indústria de
fertilizantes era formulado a partir de minérios existentes na natureza. Para diminuir os custos de aquisição de matéria-prima, as empresas de adubo passaram a usar resíduos de indústrias, nos quais estão presentes o zinco, o manganês e outros minerais necessários para um solo de qualidade. Como tratar esses rejeitos contaminados custa caro, muitas companhias incluíram nessa mistura uma montanha de poluentes. “Junto desse material nobre para a lavoura vem a escória das indústrias, que não serve para a planta e pode ser muito nociva ao organismo humano”, explica Marco Pérez, cooordenador da área técnica da saúde do trabalhador no Ministério da Saúde.

Questão de custo – Assim que essas toxinas
chegam à lavoura, ocorre uma intoxicação
em etapas. “No primeiro instante, as pessoas
expostas ao veneno são os trabalhadores das
indústrias de fertilizantes, depois o trabalhador rural e aí a população dos arredores. Só então vem o risco de contaminação de quem se alimenta dos produtos da colheita”, diz Pérez. Desde que se apreenderam os sacos de poluentes químicos no porto de Santos, o governo notificou a confederação dos trabalhadores agrícolas sobre os riscos a que estão sujeitos os agricultores que tiram o seu sustento do campo.

Gerado como resíduo tóxico nos países industrializados, esse lixo químico chega aqui duplamente ilegal. Por se tratar de produto perigoso, a escória deveria ser submetida a um processo rígido de tratamento e condicionamento, o que sai caro. O custo da disposição de uma tonelada de resíduos industriais costuma variar entre US$ 100 e US$ 2 mil nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Ocde), que reúne as nações mais ricas. Desde meados da década de 1980, estima-se que cinco milhões de toneladas de resíduos tóxicos foram exportados para as nações do antigo Leste Europeu e para os países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil.

Para evitar o comércio ilegal desses resíduos perigosos, em 1988 o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) promoveu uma conferência diplomática na Suíça para estabelecer mecanismos de controle dos rejeitos tóxicos. A chamada Convenção de Basiléia entrou em vigor em 1992 e, oito anos depois, contava 136 países membros – o Brasil inclusive. Além da fiscalização, o tratado cria formas, regras e procedimentos para regulamentar o transporte das cargas tóxicas. Seria uma forma de solucionar um problema ambiental mundial de maneira coletiva.

Só que a realidade é diferente. Cálculos do Pnuma Brasil avaliam que cerca
de 400 milhões de toneladas de resíduos perigosos são produzidos no
mundo todos os anos. Em torno de 10% desse total cruza fronteiras
internacionais. O transporte de ácidos corrosivos, de produtos orgânicos
sintetizados em laboratório e metais pesados como o chumbo, o cádmio e o mercúrio representam uma ameaça múltipla por poluir as águas subterrâneas, o solo e o ar. Com o endurecimento da legislação ambiental nos países industrializados, a partir da década de 1980, houve um dramático aumento no custo da disposição final de resíduos industriais. Foi o bastante para fazer brotar uma verdadeira máfia do lixo com ramificação internacional.

Denúncia – A carga tóxica apreendida no porto de Santos foi apenas a ponta do iceberg de uma autêntica mina de ouro. Em vez de tratar os dejetos produzidos em suas fábricas, as empresas européias – aliás impedidas de exportar resíduos perigosos por serem signatárias da Convenção de Basiléia – ensacam seu lixo químico e despacham para o quintal das nações mais pobres. “É uma contaminação invisível. Quem planta, quem colhe e quem come os alimentos produzidos na nossa lavoura não tem idéia de que pode estar comprando elemento tóxico”, diz Ingrid Oberg, chefe do Ibama em Santos. “Será que não estamos tornando inviável o nosso solo para a agricultura”, questiona Ingrid.

No início de agosto, o Ministério Público Federal disparou um alarme. Numa notificação à coordenação da administração aduaneira, os procuradores da República sugeriam mais rigor na fiscalização de cargas de minérios nos portos e aeroportos nacionais. O resultado foi imediato. Santos parou de receber cargas tóxicas. Em compensação, há notícias de que portos como o de Paranaguá serviram de porta de entrada para a carga destinada à indústria de adubo.

Pelo andar da carruagem, tudo indica que o assunto está longe do fim. A história é testemunha: a primeira denúncia de importação ilegal de lixo químico foi feita em 1992 pela ONG Greenpeace. Os ambientalistas protestaram contra a importação de poluentes da Inglaterra. Na ocasião, diz Daury de Paula Júnior, promotor de Justiça do meio ambiente de Santos, tentou-se enviar a carga de volta, mas parte teve de ser incinerada aqui no Brasil.

“O maior entrave é que faltam estudos científicos sobre o efeito desses poluentes. Sem estudo técnico, não se muda absolutamente nada. Sem legislação específica, também não se muda nada. O resultado é que pouco se fez nesses anos todos”, diz Paula Júnior. Quando o assunto é poluição e contaminações de água e do solo, o Brasil está longe de ser bom exemplo. Há casos clássicos e vergonhosos de impunidade e descaso que não se resolveram até hoje.

Alertado da amplitude do problema dos fertilizantes contaminados, o Ministério do Meio Ambiente tenta se mexer. “Os efeitos desses produtos perigosos para o meio ambiente são graves porque podem afetar toda a cadeia alimentar, dependendo da concentração e do tipo de poluente”, explica Geraldo Siqueira, chefe de gabinete da Secretaria de Qualidade Ambiental. O que o governo federal pretende é criar uma força-tarefa de vários ministérios para, mais uma vez, discutir a questão. A Cetesb se desvia da encrenca. Diz que as competências nesse caso são do Ibama e do Ministério da Agricultura. E reitera a intenção de usar resíduos industriais para a produção de fertilizantes.

Outros crimes – Uma das formas de minimizar o problema seria rotular os produtos químicos. Assim como um iogurte vendido no mercado, o agricultor teria certeza do que adiciona na lavoura. Caso contrário, em vez de aumentar sua produção, o que ele faz é dar um tiro no pé. Com um detalhe: os efeitos não aparecem no curto prazo. Demoram entre 20 e 30 anos para surgir. E, aí, pode ser tarde demais.

Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos
(Abetre), o despejo irregular de resíduos sólidos e as áreas contaminadas por produtos tóxicos são os problemas ambientais que mais ameaçam a saúde pública. Todos os dias são coletadas 228 mil toneladas de resíduos no País. Só que dois terços dessa montanha vão para lixões a céu aberto e aterros sem controle. Por isso, estima-se que sejam pelo menos oito mil os casos de contaminação no País. Só em São Paulo são mais de 700 locais comprovados. Outro vilão urbano são os postos de gasolina. Boa parte dos cerca dos sete mil postos paulistas, por exemplo, já teve algum tipo de vazamento em seus tanques. O perigo das contaminações é silencioso. Na maioria das vezes, os acidentes, as explosões e os vazamentos pegam os moradores de surpresa.