Peter Stuyvesant, o último governador de Nova Amsterdã – antes de o lugar ser transferido para a coroa britânica e rebatizado como Nova York – não gostou nada de avistar a carga humana a ser desembarcada no porto local numa manhã nublada em 1654. Eram homens, mulheres e crianças, perfazendo 23 pessoas, todas israelitas. Vinham alquebrados depois de uma viagem infernal, fugidos de Pernambuco, onde a colônia holandesa do local acabara de ser tomada pelos portugueses. Assim, de repente, a Ilha de Manhattan, o principal entreposto da Companhia das Índias Ocidentais na América do Norte, ganhava uma colônia judaica. Apesar da propalada liberalidade religiosa dos holandeses, Stuyvesant considerava que os novos cidadãos faziam parte de uma “raça velhaca” que iria “infectar” seus domínios. Mas essa oposição não vingou, como lembra agora a exposição Pernambuco: gateway to New York, patrocinada pelo governo pernambucano no Center for Jewish History, na rua 16 de Manhattan, e inaugurada no último dia 8. Ali, em mostra de painéis e artefatos, se comemoram os 350 anos da maior comunidade judaica (cerca de um milhão de indivíduos) fora de Israel.

Pergunte-se a qualquer schmuck (Zé Mané) em Nova York de onde vieram os primeiros judeus da cidade, e a resposta será “da Europa”. Este erro histórico está sendo corrigido pela magnífica apresentação organizada pela curadora e historiadora brasileira Tânia Kaufman. Foram incluídas obras de arte, tecnologia virtual, a projeção do copião do filme O rochedo e a estrela, da diretora Katia Mesel, e o lançamento internacional do livro Passos perdidos, história recuperada – a presença judaica em Pernambuco, escrito por Tânia. “Para mim é uma completa surpresa o fato de que a primeira sinagoga das Américas foi aberta em Recife”, diz Aron Myer, um visitante na abertura do show- que, diga-se, não é nenhum schmuck. Ele ficaria ainda mais perplexo mais tarde, seguindo o elaborado texto que acompanha as imagens, ao descobrir que a segunda sinagoga das Américas também foi consagrada naquela cidade. A sinagoga Kahal Zur Israel, recuperada meticulosamente – e desde 2001, depois de investimentos de US$ 1 milhão, integrada ao circuito turístico cultural da cidade –, foi a pioneira no Novo Mundo. Mas no atual bairro de Santo Antônio, que era a Mauritsstad, ou Cidade Maurícia, foi erguida a sinagoga Maguen Abraham. O lugar hoje em dia é um dos principais pontos do Recife, a Praça Independência, mais conhecida como Praça do Diário.

Peter Stuyvesant era um militar que administrava com mão de ferro a Companhia das Índias Ocidentais e um irascível ignorante. Está enterrado numa tumba esquecida da St. Mark’s Church, convertida em teatro vanguardista e a cerca de dez quarteirões do Center of Jewish History. Quando, logo depois do desembarque das famílias judaicas em Manhattan, Jacob Barsimon e Asser Levy – que faziam parte do grupo – pediram para ajudar nas patrulhas da milícia local, Stuyvesant se negou a atender com a justificativa “da aversão e insatisfação da milícia de ter como companheiros de armas soldados da referida nação (judeus)”. A frase, ipsis literis, foi escavada nos documentos da Companhia das Índias Ocidentais da época, que estão sendo traduzidos por Charles Gehring, diretor do New Netherland Project, que há 30 anos esmiúça manuscritos que sobreviveram a séculos de incêndios, revoluções e enchentes. O que Stuyvesant não sabia é que aqueles mesmos homens dispostos a pegar em armas vinham de um contingente combativo conhecido como Guarda dos Judeus. Onde hoje é a chamada Igrejinha dos Milagres, no Monte de Olinda, estava fincada a “Casa de Guardas dos Judeus”, tropa miliciana que participava das expedições navais holandesas. O forte foi foco de muita resistência, bem maior do que aquela que Stuyvesant conseguiu reunir quando o comandante inglês Richard Nicolls apontou os 36 canhões de seu navio Guinea para a baixa Manhattan e exigiu rendição incondicional. Nova Amsterdã virou, do dia para a noite, Nova York.

Puxão de orelhas – Os judeus já estavam estabelecidos no local. Diante da hostilidade de Stuyvesant, os líderes do grupo de israelitas sefaradi (judeus de ascendência ibérica ou norte-africana), Abraham de Lucena e Salvador Dandrada, apelaram para os líderes da República Holandesa na Europa. A resposta veio na forma de uma carta de recriminação ao governador na América: “Cada pessoa deve permanecer livre para escolher e praticar sua religião, de acordo com a leis da República.” Acrescentaram também que os judeus investiram somas substanciais na Companhia das Índias Ocidentais. Firmou-se, deste modo, a base de uma comunidade que influenciaria não apenas a política e a economia locais, mas também a personalidade de Nova York.

Em Pernambuco, no auge da colonização holandesa, a comunidade judaica tinha 1.500 pessoas no lugar. O mesmo número de israelitas que hoje fazem do Estado sua moradia. A diferença é que no século XVII estes cidadãos eram de origem sefaradi, e no século XXI são asquenazi (herdeiros das comunidades judaicas do noroeste europeu, e que depois viria a incluir também os originários da Europa Central e Oriental). Aos primeiros deve-se muito da prosperidade do ciclo do açúcar no Brasil, além da enorme evolução nos métodos do comércio e inovações no sistema financeiro. O mesmo espírito empreendedor foi levado no êxodo para Nova York. Os judeus imediatamente injetaram vitalidade à economia local. Seus descendentes formam agora o público que o governo de Pernambuco espera atrair na iniciativa turístico-cultural apresentada na semana passada para operadores de agências de viagem americanas. A missão comercial do Estado, liderada pelo vice-governador José Mendonça Filho (PFL), também reuniu 90 empresários do setor tecnológico para vender seu PortoDigital – o maior centro de tecnologia digital do Brasil, reunindo 68 companhias de tecnologia de informação e comunicação – para investidores dos EUA. Ou seja: um tour de force que abrange desde o século XVII até o terceiro milênio.

No best-seller A ilha no centro do mundo (Ed. Objetiva), o autor Russell Shorto traça o mais bem acabado retrato de Nova York no período da colonização holandesa. O autor baseou-se nos arquivos traduzidos por Charles Gehring e nas investigações que fez na Europa. Num dos trechos, porém, ele cita Manhattan como a maior e melhor estruturada cidade levantada pela Holanda em suas colônias. ISTOÉ procurou o escritor para perguntar se ele conhecia Recife e Olinda, mas Shorto estava incomunicável no Vale do Hudson. A exposição Pernambuco: Gateway to New York, certamente chamará sua atenção. Um novo mundo vai se abrir diante de seus olhos. Do mesmo modo que aconteceu com os 23 “judeus pernambucanos” que desceram em Manhattan para mudar de vez a fisionomia da ilha.