Marta Suplicy e José Serra, que disputam voto a voto a Prefeitura de São Paulo, têm fortes motivos históricos para temer o confronto. Vença quem vencer, o eleitorado paulistano estará rompendo uma tradição que carimba seu comportamento desde a redemocratização do País: a de nunca eleger um prefeito do partido do presidente ou do governador. Já no Rio de Janeiro, a análise do comportamento do eleitorado é um balde de água gelada nas pretensões do PT este ano. As duas maiores cidades brasileiras guardam enormes diferenças político-partidárias entre si, mas apresentam um ponto inquestionavelmente comum: no voto para prefeito, o carioca e o paulistano fazem escolhas que nada têm a ver com a postura que adotam em eleições presidenciais. No Rio, a votação de Lula é crescente desde 1989, mas os petistas empacam nas corridas municipais. Os paulistanos, por sua vez, descarregam votos no PSDB para a Presidência e para o governo estadual, mas até agora se recusaram a entregar aos tucanos as chaves da cidade.

Uma análise minuciosa e até cartográfica das últimas cinco eleições nessas
duas cidades é a atração principal do atlas eleitoral que ilustra o estudo
O voto nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo: entre o municipal e o presidencial, que a Editora PUC lança este mês. O trabalho – que cruza bairro a bairro as informações fornecidas pelas urnas de 1994, 1996, 1998, 2000 e 2002 –
foi desenvolvido pelos pesquisadores brasileiros Cesar Romero Jacob e Dora Rodrigues Hees e pelos franceses Philippe Waniez e Violette Brustlein. Com muitos mapas coloridos, elaborados com a intenção de desvendar o descompasso de cariocas e paulistas nas eleições presidenciais e municipais, fica nítida a existência de territórios bem delimitados por tucanos, petistas e malufistas em São Paulo. No Rio, a marca mais evidente é a da complexidade provocada pela fragmentação do brizolismo e pela fragilidade das duas forças políticas que disputam a hegemonia nacional, PT e PSDB.

“A política nacional parece não ter o poder de influenciar as duas cidades. Em São Paulo, a geografia do voto nas cinco eleições se repete porque o comportamento dos bairros e das regiões é muito semelhante, mas a matemática é diferente”, diagnostica Romero Jacob. Ele ressalta que as duas metrópoles se assemelham no desequilíbrio entre eleições nacionais e locais, provocado pela presença de forças regionais consistentes que não se viabilizaram nacionalmente. “No caso de São Paulo, essa força regional se dá pela direita, com o malufismo, e no Rio é pela esquerda, pelas correntes originadas da fragmentação da família brizolista.”

O estudo ressalta que desde 1982 o governo paulista é dirigido por políticos que militaram no PMDB na época da ditadura, incluindo os dissidentes que fundaram o PSDB: Franco Montoro (1982), Orestes Quércia (1986), Luiz Antônio Fleury Filho (1990), Mário Covas (1994 e 98) e Geraldo Alckmin (2002). Os tucanos também conquistaram a maioria dos votos paulistanos para a Presidência: Covas foi o mais bem votado em 1989 e Fernando Henrique Cardoso arrasou em 1994 e 98. Em contrapartida, tucanos e peemedebistas colecionam derrotas para a prefeitura: Jânio Quadros (PTB) venceu Fernando Henrique em 1985; Luiza Erundina (PT) deixou João Leiva para trás em 1988; Paulo Maluf e Celso Pitta, do PPB, barraram Aloysio Nunes Ferreira em 1992 e José Serra em 1996; e finalmente Marta Suplicy derrotou o tucano Geraldo Alckmin em 2000. Em todas essas eleições, governadores e presidentes não conseguiram alavancar seus candidatos a prefeito.

No caso dos tucanos, os maiores índices de votos em seus candidatos partem dos mesmos bairros em toda eleição. O mesmo ocorre com malufistas e petistas. Em 1996, lançado por Maluf, Pitta teve 48,2% no primeiro turno e 62,3% no segundo. As maiores votações nos dois turnos ocorreram na parte central da capital: Vila Maria, Mooca, Ipiranga e Indianópolis. Quatro anos depois, derrotado por Marta, Maluf alcançaria seu melhor desempenho exatamente nos mesmos bairros. Já o PT colheu, em 1996, os maiores porcentuais de Erundina na zona leste (São Miguel Paulista, São Mateus e Sapopemba) e na zona sul (Grajaú e Piraporinha). “Pode-se pensar que esses redutos eleitorais de Erundina estejam relacionados à proximidade com os municípios industriais do ABCD”, sugere o estudo. Em 2000, Marta amplia um pouco as conquistas territoriais dos petistas, que avançam pelo oeste da cidade, mas mantém o domínio nos bairros citados.

O PSDB também tem seus redutos. Em 1996, com apenas 15,6% dos votos apesar do apoio de FHC e Covas, Serra deu saltos maiores na parte mais rica da cidade, especialmente Jardim Paulista, Pinheiros e Perdizes. Quatro anos depois, o então vice-governador Alckmin chegou a 17,2% para prefeito, com os maiores porcentuais concentrados no mesmo mapa de Serra. “Isso caracteriza um território do PSDB na cidade”, resumem os pesquisadores. A geografia tucana se repete nas eleições presidenciais, embora com uma explosão de votos que garante a vitória de Fernando Henrique. Em 1998, ele apresentou excelentes resultados em praticamente todas as zonas eleitorais, mas foi sobretudo em Pinheiros, Butantã, Jardim Paulista e Indianópolis que alcançou as votações mais espetaculares. Serra para presidente, em 2002, colhe nos mesmos lugares seus melhores índices, embora a votação do PSDB tenha sido bem inferior do que em 1998.

Se na cidade de São Paulo o malufismo complica a polarização nacional entre PT e PSDB, no Rio o brizolismo e suas ramificações é que determinam o resultado das urnas. Desde a eleição de Brizola em 1982, em apenas uma eleição o vitorioso não foi um nome da tal “família brizolista”. Foi em 1986, quando Moreira Franco, do PMDB, derrotou o então vice-governador Darcy Ribeiro, do PDT. O resultado se deveu à força do Plano Cruzado, que levou o PMDB a eleger todos os governadores do País, à exceção de Sergipe. O PDT fez os prefeitos em 1985 (Marcello Alencar) e 1988 (Saturnino Braga) e o próprio Brizola voltou ao governo com votação esmagadora no primeiro turno de 1990. Dois anos depois, Cesar Maia, seu ex-secretário de Fazenda, elegeu-se prefeito pelo PMDB, dando início a um ciclo político na prefeitura que se seguiu em 1996 com a vitória de seu candidato, Luiz Paulo Conde, e com sua volta à prefeitura, derrotando Conde, em 2000, já no PTB. Agora, no PFL, aparece como favorito nas pesquisas, em condições de liquidar a fatura no primeiro turno. Nesse meio tempo, o ex-brizolista Marcello Alencar elegeu-se governador pelo PSDB em 1994 e o PDT voltou ao governo em 1998 com Anthony Garotinho, que também deixaria o partido e elegeria a mulher, Rosinha Matheus, em 2002, pelo PSB.

Ao contrário de São Paulo, os limites dos “territórios” das correntes políticas não são tão nítidos no Rio. Isso se explica não só pela fragmentação e heterogeneidade das alianças, mas também pelo forte componente religioso que despejou votos evangélicos em Garotinho, Rosinha e Benedita da Silva (PT). De qualquer forma, Lula não parou de crescer na cidade desde 1989, quando chegou a 12,1% no primeiro turno. Teve 27,2% em 1994, 42,1% em 1998 (com Brizola de vice) e 47,2% no primeiro turno de 2002. Nas duas vezes em que foi ao segundo turno, a votação entre os cariocas foi consagradora: 73% em 1989 e 81% em 2002, fruto direto da transferência de votos de Brizola e Garotinho – que tirou o petista dos redutos de classe média das zonas sul e norte e o projetou para os bairros populares da zona oeste e dos subúrbios da Central do Brasil e da Leopoldina.

O avanço de Lula, eleição a eleição, não rendeu muitos frutos para o PT nas eleições municipais. Em 1996 Chico Alencar teve 21,7% dos votos e em 2000 foram 22,6% para Benedita. Ambos ficaram fora do segundo turno, com diferenças importantes no perfil dos eleitores. Chico apresentou melhor desempenho em bairros de classe média: Laranjeiras e Botafogo, na zona sul e Tijuca, Maracanã e Vila Isabel, na zona norte. Benedita alcança seus mais elevados porcentuais em bairros populares da zona oeste, como Santa Cruz, Campo Grande e Bangu. Além de seu perfil, os pesquisadores acreditam que ela tenha se beneficiado do apoio dos pastores das igrejas pentecostais nos bairros pobres.

O estudo deixa evidente o desequilíbrio entre o desempenho dos candidatos a presidente e a prefeito do PSDB em São Paulo e do PT no Rio. Em São Paulo, segundo os pesquisadores, “possivelmente isso decorra da presença de forças de direita, a exemplo do malufismo, que desempenham um papel significativo na política municipal, mas não têm viabilidade presidencial, como mostrou o insucesso dos candidatos do PPB, Maluf em 1989 e Espiridião Amin em 1994. Desse modo, essas forças são levadas a apoiar candidatos a presidente de outros partidos, como em 1998, quando a adesão de Maluf a Fernando Henrique contribuiu para sua espetacular votação”. Situação semelhante, mas com sinal trocado, ocorre no Rio, onde o PT local não se beneficia do sucesso de Lula.