Na mesma rapidez em que os muros sobem, em que se blindam carros e que parafernálias eletrônicas são vendidas na tentativa de garantir segurança e aplacar o medo daqueles que podem pagar por isso, cresce a violência no País e a certeza de que ninguém está seguro. O Estado assiste a este filme de guerra – entra governo, sai governo – sem indicar uma solução para o caos que os estudiosos, dos mais variados matizes ideológicos, apontam há mais de 40 anos. Ela passa, obrigatoriamente, pela máxima cristã de repartir o pão. Ou seja, pela distribuição de renda, pela presença do Estado em todos os estratos sociais. Segundo Nanak Kakwani, diretor do Centro Internacional de Pobreza (órgão ligado ao Pnud), são 24,3 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza. O certo é que, enquanto se empurra com a barriga essa questão político-econômica e se discute segurança pública pela ótica da repressão (mais armas, mais viaturas, mais policiais, mais cadeias), a resposta que virá do outro lado será de mais violência. O medo tornou-se o mais democrático dos sentimentos. De A a Z, é impossível sentir-se seguro em casa, na rua, dentro do carro, dos ônibus, andando a pé, e até no trabalho.

Em São Paulo, Estado que representa 35% do PIB nacional, 3,6 milhões de pessoas moravam em áreas de extrema pobreza em 2000, revela estudo da Fundação Sead. É justamente na cidade mais rica do Brasil que o crime se voltou para uma modalidade mais lucrativa e menos arriscada, comparado ao sequestro e ao roubo de cargas: o assalto a condomínios de luxo. O modus operandi foi exportado para o Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador. O crime causa mais do que prejuízos ao patrimônio e à vida. Ele potencializa o pânico de quem vive, seja no morro, seja no asfalto. O tráfico de drogas queimou ônibus e paralisou Vitória (ES) na última semana. Nem mesmo o carro do assessor de imprensa do governador Paulo Hartung, jornalista Daniel Simões, escapou. Foi incendiado na segunda-feira 22, próximo ao Palácio Anchieta. E mais uma vez a saída oficial foi a de pôr o Exército nas ruas. No Rio de Janeiro, já viraram rotina os tiroteios que fecham nobres e suburbanas avenidas por causa da cerrada troca de tiros entre quadrilhas ou entre polícia e bandido. De volta a São Paulo, até o tráfico resolveu fazer uma espécie de condomínio fechado para se defender de ataques-surpresa da polícia e de rivais. Eles transformaram em prisioneiros parte dos 20 mil moradores da favela Parque Santa Mônica, em Sapopemba, região pobre da zona leste.

Como não há registros oficiais específicos sobre roubo a condomínios, setores responsáveis em planejar segurança pessoal, empresarial e patrimonial avaliam que a média de assaltos a prédios em São Paulo, desde janeiro de 2003, está na casa de 20 (nível médio) por semana. Quando se trata de apartamentos a partir de US$ 1 milhão, esse número cai para um por semana. No feriadão de 15 de novembro, moradores dos luxuosos edifícios da Mooca e do Jardim Avelino foram surpreendidos por homens fortemente armados. No primeiro, 15 homens renderam o porteiro e fizeram mais de 20 reféns por sete horas e entraram em sete dos 12 apartamentos levando dinheiro, jóias e eletro-eletrônicos. Já no edifício do Jardim Avelino nem os porteiros viram os bandidos. Quatro dos 13 apartamentos foram arrombados: os das vítimas que viajaram. Só de um levaram R$ 60 mil em jóias, relógios e notebooks.

Quatro meses antes, a polícia registrou um assalto a um condomínio da rua Santa Eulália, no Morumbi. Dos 19 apartamentos, 17 foram assaltados por dez homens que vestiam terno e gravata. O porteiro foi dominado ao permitir o acesso de um falso entregador. Eles levaram dinheiro, jóias, celulares e um automóvel Land Rover. Mas um especialista em segurança contou que no luxuoso bairro mais de 30 condomínios já foram atacados em menos de um ano. Em um deles, um único apartamento rendeu aos marginais US$ 1,5 milhão em dinheiro, fruto da venda de um helicóptero. A ação mais espetacular, segundo este consultor, ocorreu no fim do ano passado quando dez homens, armados de metralhadora, fuzis AR-15 e coletes à prova de balas, invadiram o prédio 82 da rua Cristóvão Diniz, nos Jardins, cujo valor do condomínio é de R$ 3,5 mil mensais. De 11 apartamentos, com mil metros quadrados cada e avaliados em US$ 2 milhões, apenas três não foram roubados. Os outros oito renderam aos assaltantes R$ 9 milhões em jóias, moeda estrangeira, coleção de seis relógios Patek Philippe e obras de arte. Detalhe: o prédio fica a 300 metros da 78º DP. O delegado Godofredo Bittencourt, diretor do Departamento Contra o Crime Organizado, disse que a maior dificuldade de se investigar esse tipo de ação é a omissão das vítimas. Elas preferem não dar queixa ou criam muita dificuldade para passar informações.

Cresce o medo – Em Belo Horizonte, no sábado 13, um bando de 15 assaltou um condomínio no bairro dos Funcionários e limpou todos os apartamentos. A polícia não sabe quanto faturaram. O caso mais dramático foi registrado na estrada que liga BH ao Rio, a BR-040, em 24 de novembro. Interceptado por uma falsa blitz, Alexandre Araújo Rezende, que dirigia um Gol, teve seu corpo amarrado a uma bomba e foi obrigado a retornar ao condomínio onde mora. Ele jogou o carro na cancela e conseguiu fugir dos ladrões. O artefato, feito de pólvora prensada, tipo granada, foi desatado de seu corpo pela polícia, que encontrou seu carro com armamento e munição pesada. O feriadão da proclamação da República se transformou em pesadelo para os donos das casas do condomínio Paratinga, na Ilha de Itaparica (BA). Sete homens encapuzados e armados com fuzis e metralhadores promoveram um arrastão no domingo 14. Eles fizeram 17 reféns, espancaram veranistas e praticaram sequestro relâmpago. No dia seguinte, mais três condomínios na região foram assaltados.

Para Ricardo Chilelli, consultor de segurança, os profissionais do sequestro, assalto a banco e roubo de cargas estão migrando para o roubo de condomínios de luxo, pois a rentabilidade é maior e o risco de serem presos é menor. “Eles levam, no mínimo, mais de R$ 1 milhão por prédio de luxo roubado.” Para Chilelli é possível conter a ação dessas quadrilhas com baixa tecnologia. Mas o preço para morar em grandes capitais, além da poluição e congestionamentos, é a violência. Seu lema, porém, é “viva com atenção e não sob tensão”. Segundo ele, é preciso seguir as regras de segurança estabelecidas para o prédio. O maior problema hoje é a participação de funcionários na ação criminosa. “Se não tiver contratação adequada e treinamento está se jogando dinheiro no lixo com parafernália eletrônica”, adverte.

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Para a vice-coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a psicóloga Nancy Cardin, a paranóia da segurança e o aumento da procura por moradias consideradas menos vulneráveis é uma sobrevivência psicológica porque achar que não se pode fazer nada contra a violência é muito ameaçador. “Cada um usa o repertório (blindagem, vigilância eletrônica, etc.) que o bolso permite. Na periferia já se vêem muros altos, cães que são ameaças à própria família e porteiros eletrônicos. Uma das únicas coisas democraticamente distribuídas na sociedade é o medo”, afirma.

Fora das grades dos condomínios, a escalada da violência aumentou no Rio, alvejando a zona sul, a mais rica da cidade. Foram registrados vários assaltos a turistas nas áreas próximas à praia. Responsável pela Delegacia de Atendimento ao Turista, Álvaro Luiz de Souza admitiu que a média atual é de dez assaltos por dia, quando em 1996 era de 3,13. O local mais explosivo é o Morro do Vidigal, onde traficantes lutam com rivais da Rocinha há oito meses. Na noite de segunda-feira 22, o confronto recrudesceu com tiroteios cerrados e até arremesso de granadas. A violência na região foi tema de uma reunião entre os presidentes de associações de moradores e comandantes de batalhões da PM. Autoridades estimaram que o movimento de drogas rende aos traficantes locais cerca de R$ 10 milhões por dia. A presidente da Associação de Moradores de Ipanema, Gloria Roland, saiu da reunião sem esperanças: “Há sempre promessas, mas não há policiamento nas ruas.” Gloria conta que os condomínios de Ipanema passaram a contratar seguranças para vigiar as calçadas, que deveria ser tarefa da polícia.

Apesar de o noticiário estar concentrado na zona sul, a violência toma conta de todas as áreas. Uma dramática mostra dessa “socialização” do crime aconteceu em 12 horas, entre a noite de quarta-feira 24 e a tarde do dia seguinte. Às 22 horas de quarta-feira, pela segunda vez na mesma semana, novo confronto Vidigal-Rocinha. A PM fechou a avenida Niemeyer, uma das vias de ligação entre o Leblon e São Conrado. Uma hora depois, a 20 quilômetros dali, tiroteio com traficantes da favela Parque Arará, na zona norte, obrigou a polícia a fechar por uma hora a avenida Brasil, principal da cidade. Os motoristas que iam em direção à zona oeste voltaram pela contramão enfrentando as balas.

A madrugada de terror continuou no Morro dos Macacos, em Vila Isabel (zona norte). No tiroteio entre traficantes e polícia, o adolescente Geovani Cruz Tomás Alves, 16 anos, morreu. Muitos não puderam sair para trabalhar e levar os filhos à escola. O secretário de Segurança Pública, Marcelo Itagiba, defendeu o enfrentamento. “A polícia continuará prendendo os bandidos, que, se resistirem a tiros, serão feridos ou mortos”, afirmou. Para o historiador e jornalista Luís Mir o Estado conhece o tamanho e o custo desta guerra histórica. “Há um total abandono do Estado pela defesa da vida. Isso não é prioridade econômica e já estava previsto. Carlos Langoni, ex-presidente do BC – embora eu não comungue de suas teses –, disse, em 1973, o seguinte: ‘Caminhamos para um patamar de desigualdade que ficará impossível a convivência social.’” Mir critica o isolacionismo das elites quando diz que o alarme desses setores são patrimoniais. “Cerca de 60% da população está excluída de qualquer projeto e a classe média não se importa. A elite aperta cada vez mais a corda em seu pescoço. Ela tem segurança, política e leis próprias e se fecham em condomínios”, dispara. A trégua só será possível com controle das polícias – “para que matem menos” –, acesso à Justiça das camadas marginalizadas e, principalmente, redução da desigualdade econômica com um projeto de distribuição de renda.


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