ALEXANDRE SANT'ANNA/AG. ISTOÊ

DISTORÇÃO Na Ilha de Marambaia, 70% do território pode ficar nas mão de 379 pessoas

A idéia era reparar injustiças históricas e salvaguardar a riqueza cultural dos remanescentes de escravos que construíram quilombos. Mas a idéia generosa acabou virando uma caricatura e hoje o governo Lula está diante de uma verdadeira “indústria quilombola”. Valendo-se de uma instrução normativa do Incra, grupos supostamente remanescentes de quilombos estão reivindicando uma área maior que o Estado de São Paulo: cerca de 30 milhões de hectares. É uma disputa que opõe proprietários agrícolas e empresários do agronegócio ao movimento negro e a ONGs de quilombolas. Surgidos no século XVII como comunidades livres que abrigavam escravos foragidos da servidão, os quilombos foram massacrados pelas autoridades coloniais e depois imperiais.

A norma do Incra foi editada com base no Decreto 4.877, baixado pelo governo federal em 2003 para regulamentar a demarcação e titulação de terras para grupos quilombolas ou remanescentes de quilombos. Há reivindicações justas, como a do Povoado Mesquita, localizado em Cidade Ocidental (GO), a 30 km de Brasília. O povoado, que abriga 313 famílias, cultiva marmelo, cana-de-açúcar e mandioca. Foi regularizado em 2006 e teve origem há cerca de 200 anos, com a doação de uma gleba a três mulheres, escravas alforriadas, por um proprietário de terras da região.

O problema é que a falta de rigor da norma criada pelo Incra está dando margem a uma verdadeira pirataria antropológica. Há municípios, como o de São Mateus, no norte do Espírito Santo, com 80% de sua área já demarcada para desapropriação. A cidade tem 100 mil habitantes, dos quais 3.985 proprietários rurais. Na Ilha de Marambaia, Rio de Janeiro, cerca de 70% de uma área de 82 quilômetros quadrados de litoral preservado pela Marinha pode passar, depois de mais de 100 anos, para 379 pessoas que se dizem remanescentes de quilombolas. Estranhamente, dos supostos quilombolas do local, 21% se declaram brancos. “Sendo a Marambaia uma formação insular, de mata escassa, onde havia na base do morro o maior mercado de escravos da província, seria espantoso que os escravos fugidos se escondessem na elevação ou vizinhança, em beco sem saída e de fácil captura”, diz um documento oficial da Marinha.

Em reunião com o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Félix, o presidente Lula determinou que fosse puxado o freio de mão. O advogado-geral da União, ministro José Antônio Dias Toffoli, foi escalado para colocar um fim na questão. Sob sua coordenação, foi criado um grupo de trabalho composto por 25 órgãos do governo. No relatório final que está sendo elaborado pela Advocacia Geral da União (AGU), o governo reconhece os abusos dos responsáveis pela demarcação das terras e recomenda a revisão da instrução normativa que estava sendo utilizada pelo Incra em processos de reconhecimento, desapropriação e delimitação de áreas de quilombos. “A instrução normativa extrapola o decreto”, admitiu Toffoli à ISTOÉ.

A INSTRUÇÃO EM VIGOR NÃO RECONHECE ESCRITURAS, TERRAS PRODUTIVAS E NEM MESMO CONTESTAÇÕES JUDICIAIS

Pelo processo em vigor de reconhecimento de terrenos pelo Incra, não importa se as áreas são produtivas ou não, ou se os produtores ali instalados geram empregos e contribuem para o desenvolvimento. Às favas também as escrituras de terras registradas em cartório. Basta alguém se autodefinir como remanescente de quilombola para que seja dado o pontapé inicial para o processo de desapropriação de toda aquela área. O processo também podia correr mesmo que houvesse questionamentos na Justiça pelos proprietários da terra. Com a nova interpretação do governo, enquanto houver contestação, nada poderá andar. O grupo de trabalho da AGU descobriu outra esperteza que estava jogando a favor de grupos autointitulados quilombolas: a verificação das áreas reivindicadas muitas vezes era feita por antropólogos ligados à própria comunidade. “A idéia é dar segurança jurídica ao processo”, acrescentou Toffoli.

A briga por imensas áreas promete novos capítulos. Atualmente, há 588 processos de titulação de terras para remanescentes quilombolas em curso no Incra. Segundo a Fundação Cultural Palmares, hoje existem 1.170 comunidades registradas e um total de três mil mapeadas. O presidente da Fundação, Zulu Araújo, nega que haja irregularidades no reconhecimento de comunidades quilombolas. O movimento quilombola nacional divulgou nota dizendo que o governo ameaça retirar seus direitos em favor do agronegócio. “Consideramos a alteração da instrução normativa uma atitude racista”, contestou o movimento. A queda-de-braço só está começando.