Ele está anos-luz distante do estereótipo do médico de jaleco branco e estetoscópio no pescoço. Formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP) em 1962, Ricardo Renzo Brentani também não se encaixa na categoria do cientista aparvalhado. Sempre que pode, ele aponta para os sapatos bem lustrados e diz ser a prova viva de que nem todo cientista é maluco porque jamais saiu de casa com uma meia de cada cor. De sua cidade natal, Trieste, na Itália, de onde partiu com um ano de idade para mais tarde se naturalizar no Brasil, Brentani herdou o apreço pelo bem-vestir. Crachá pendurado na indefectível corrente de ouro, ele também não afrouxa os hábitos nem abandona a camisa social e a formalidade, mesmo quando está à paisana. Brentani integra uma outra categoria de pesquisador, distante do bisturi e dos tubos de ensaio, que ele confessa não serem sua praia.

Misto de mentor intelectual e administrador de pulso firme, transformou seu reinado à frente da Fundação Antônio Prudente Hospital do Câncer de São Paulo em um marco. Em 11 anos, elevou a instituição filantrópica a centro de referência em pesquisa genética do câncer, e seu curso de pós-graduação, fundado em 1997, recebeu nota seis na avaliação anual do Ministério da Educação (a máxima é sete). Seu trabalho está apoiado num tripé formado pelos rumos do hospital, pelas aulas e a orientação de teses de seus alunos na Faculdade de Medicina da USP e pela direção da filial brasileira do instituto suíço Ludwig de pesquisa do câncer. Embora não examine nenhuma lâmina no laboratório, cada estudo é feito a pedido e sob orientação dele. Foi assim que os brasileiros ganharam reconhecimento da comunidade científica internacional. Em 2001, o Brasil foi o segundo país, depois dos Estados Unidos, com melhores resultados na pesquisa genética do câncer humano, a área mais competitiva da ciência mundial.

O Ludwig e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) investiram US$ 10 milhões cada para desvendar os genes associados aos tumores. Desde 1983, todos os cânceres tratados no hospital são decifrados pelo microscópio do instituto suíço. Com base nesse catálogo de doenças, busca-se detectar novas técnicas de diagnóstico e tratamento. O segredo do combate ao mal degenerador das células está em compreender os mecanismos do organismo usando a genética como sinalizadora.

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Brentani, que desde menino queria ser médico para entender como funcionava o corpo humano, colocou sua marca pessoal nessa marcha. “A força dos hospitais vem de seu instituto de pesquisa e o paciente sente mais confiança se seu próprio médico estiver na fronteira do conhecimento”, sentencia. Treinar bons cérebros para produzir ciência de ponta virou uma de suas obsessões. “Formei 60 pessoas no mínimo e a todas espero ter passado a noção da importância do rigor científico, de publicar artigos em revistas de renome e de valorizar a ciência sobre todas as coisas”, reza Brentani, que tem 130 artigos publicados, quatro deles na prestigiada inglesa Nature e um na americana Science. Seu temperamento arredio à exposição pessoal se reflete no hospital. Ali, os detalhes do tratamento de pacientes famosos, como o governador de São Paulo, Mário Covas, são mantidos numa redoma de sigilo. Só vão a público se o doente autorizar.

Na opinião do professor Brentani, nem sempre a terapia estrangeira tem resultados positivos. O disparate entre o índice de cura de tumores infantis nos Estados Unidos e no Brasil ilustra a situação. Uma equipe de oncologistas se desdobrava para saber por que garotos de idade, sexo e diagnóstico idênticos tinham diferentes reações ao mesmo tratamento. Lá fora, salvavam-se sete em cada dez crianças e por aqui, sobrevivia a metade. Após analisarem os casos clínicos nacionais, os médicos concluíram que a desnutrição dos brasileiros tornava devastadores os efeitos da quimioterapia. Descoberto isso, em um ano o porcentual de cura aumentou.

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A história nacional da pesquisa do câncer seria diferente se Brentani tivesse seguido o caminho de seus colegas de turma, no obrigatório rumo a uma pós-graduação no Exterior. Filho de um industrial e da artista plástica Gerda Brentani, aos 29 anos ele estava casado com a bioquímica Mitzi, com quem trabalhou por 18 anos no laboratório de seu orientador, Isaias Raw, atual presidente da Fundação Butantan. A estabilidade de Brentani sofreu uma reviravolta quando Raw foi cassado pelo regime militar. Por milagre da sorte, como diz Brentani, os cientistas do Ludwig o procuraram para dirigir a versão tropical do centro de pesquisa suíço.

Com quatro filhos e nove netos, aos 65 anos, Brentani não recebe pelo expediente no hospital. Sua remuneração vem das aulas e do Ludwig. Pela legislação da filantropia, o Hospital do Câncer deve reservar 60% dos leitos ao sistema público de saúde, o SUS. “O Brasil é um país rico em gente pobre e é nossa obrigação atender os menos favorecidos”, prega Antônio Ermírio de Moraes, presidente do grupo Votorantim, que doou US$ 5 milhões para a construção de um anexo no hospital. Assim como Ermírio, com quem mantém uma amizade cordial, Brentani chega ao escritório por volta das sete da manhã e considera abjeta a idéia de tirar um mês de férias. Ele costuma emendar folgas nos intervalos entre congressos e volta e meia deixa rastros de que bateu cartão no final de semana.

Em parceria com a única filha médica, Brentani publicou em 1997 um estudo em que relata a descoberta de que os integrantes de uma família com mutação genética na mesma proteína envolvida na doença da vaca louca sofriam de esquizofrenia, enfermidade mental que leva a pessoa a viver num mundo irreal. Há cinco anos, o médico, que fala cinco idiomas – português, italiano, espanhol, francês e inglês –, estuda essa molécula, presente nas células cerebrais, os neurônios, que tem influência no mecanismo de memória e aprendizado. “A memória é a base do pensamento e o neurônio não pode raciocinar sem comparar o que está vendo agora com aquilo que aprendeu”, ensina o professor.

Como explicar que o virtuose de câncer vá estudar a memória? O motivo é sui generis: “Não gosto de andar por trilha onde outros já passaram”, resume Brentani. Sua capacidade de memorização, aliás, é motivo de saia-justa entre colegas e subordinados. Rato de biblioteca, ele sempre foi o primeiro a folhear as revistas internacionais para estar em sintonia com as descobertas científicas. Para não serem pegos de surpresa, seus pupilos travam verdadeira disputa para ler antes dele as publicações técnicas. Tudo para não serem cobrados e surpreendidos pelo gênio carismático de um cientista que fez do trabalho a razão de sua vida.


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