Há em atividade no País uma máfia de tráfico de pessoas e trabalho escravo que opera entre China e Brasil. Os chineses embarcam para cá seduzidos por boas promessas de trabalho, mas ao chegar cumprem jornadas de 14h por dia e até sete dias por semana. Os poucos que recebem salário ganham apenas uma parte ínfima do prometido. Eles vivem nos centros urbanos das metrópoles brasileiras, trancafiados em cômodos escondidos nos fundos de estabelecimentos comerciais. Essas informações estão contidas nos relatórios do grupo especial de investigações formado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União obtidos com exclusividade por ISTOÉ.

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TORTURA
Entre os casos descobertos pelo MTE, um chinês teve o corpo coberto
de queimaduras de cigarro e escoriações por diminuir o ritmo de trabalho

Os casos não param de surgir. Na última investida da equipe de buscas, na quinta-feira 19, foram encontrados dois homens, uma mulher e um bebê de cinco dias dividindo espaço com lixo e alimentos no sótão de uma pastelaria em Niterói, cidade vizinha ao Rio de Janeiro. Mas a operação mais chocante, relata o grupo especial, foi a primeira, em 2013. Em Mangaratiba, interior do Rio, um jovem vivia atrás de grades e era queimado com cigarro quando diminuía o ritmo de trabalho. Apesar de concentrados no Rio, os casos não se limitam ao estado. Em setembro de 2014, a Polícia Federal encontrou uma mulher em uma loja em Araçatuba, no interior de São Paulo, amarrada e dormindo sobre jornais.

A proliferação de casos levou o Ministério Público Federal a apurar, sob sigilo, um esquema de corrupção no controle imigratório do Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, no Rio. A procuradora do trabalho Guadalupe Couto observa que há uma repetição de práticas nos casos – entre elas a danificação de passaportes e vistos com o objetivo de conseguir segunda via – o que “demanda apuração na esfera criminal sobre a possível participação de agentes públicos no esquema”. Com a aproximação dos Jogos Olímpicos, a preocupação aumenta: uma lei aprovada na semana passada dispensa o visto para estrangeiros entre junho e setembro do ano que vem, visando facilitar a entrada dos atletas e turistas que desejarem acompanhar os Jogos.

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O circuito criminoso começa na China, onde rapazes de até 27 anos recebem propostas de trabalho. Um deles, L., de 23 anos, chegou ao Rio em 2013 e desde então trabalhou exaustivamente em uma pastelaria recebendo R$ 300 por mês. O restante dos R$ 1,5 mil prometidos era transferido para a família, segundo afirmou às autoridades. Mas o dinheiro nunca saiu do bolso do patrão. Para chegar ao Brasil foram necessários 15 mil yuans, a moeda chinesa, o equivalente a R$ 7 mil. O conterrâneo empregador recolhia a “dívida” mensalmente.

L. dormia no sótão da loja, um cômodo de menos de 1,5m de altura e sem janelas que dividia com outro funcionário ilegal, também chinês. Dois meses após o resgate e já de posse das carteiras de trabalho, os dois rapazes que optaram por continuar no mesmo emprego falaram à ISTOÉ. Se querem voltar para a China? “Não quero!”, escreve um deles em seu smartphone, com o auxílio de um aplicativo de tradução. “O trabalho agora é muito bom. Saio para beber cerveja, passeio no shopping”, complementa em um português enrolado. Entre risos contidos e sinais afirmativos rápidos com a cabeça, fala que não tem namorada, nem família.

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“Muitos deles acham que vão ser deportados, por isso ficam com medo de denunciar. Mas, por serem vítimas do trabalho escravo, eles têm direito à autorização imediata de trabalho”, afirma Marcia Albernaz, auditora fiscal do MTE. As vítimas também ganham curso de português e capacitação profissional. Já o patrão paga dívidas trabalhistas (o de Li desembolsou R$ 81 mil só em vencimentos atrasados), fundo de garantia, indenização individual por danos morais, indenização coletiva por fomentar a prática de trabalho escravo e multa de 40%. É pouco frente aos crimes bárbaros que estão sendo revelados. Parece período colonial, mas é 2015.