Cumprindo um papel que a Constituição lhe atribui, o Tribunal de Contas da União recomendou ao Congresso Nacional, na quarta-feira 7, a rejeição das contas de 2014 do governo Dilma Rousseff. Foi a primeira vez que a Corte disse não à contabilidade do Executivo desde 1937, quando Getúlio Vargas teve suas contas reprovadas. Os ministros do tribunal concluíram, por unanimidade, que a administração da petista contrariou a Lei de Responsabilidade Fiscal ao incorrer nas chamadas pedaladas fiscais, como ficaram conhecidos os atrasos nos repasses do Tesouro Nacional aos bancos públicos para maquiar as finanças públicas. A palavra final, agora, será do Congresso. Deputados e senadores podem ou não seguir a recomendação do TCU, mas votarão pressionados pelo parecer do órgão auxiliar do Legislativo. Ignorar a análise do tribunal terá um custo político altíssimo. A primeira parada do acórdão do TCU será a Comissão Mista de Orçamento. Depois, o documento vai a plenário. A análise final deve ficar apenas para 2016. A decisão da corte de contas, no entanto, já foi capaz de tensionar ainda mais o ambiente político num momento de inequívoca fragilidade da presidente Dilma Rousseff.

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DERROTA ANUNCIADA
Durante a sessão, o ministro-relator Augusto Nardes derrubou
as principais teses de Luís Adams, da AGU

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Como a derrota era considerada favas contadas, antes mesmo do julgamento, o governo poderia ter evitado novos desgastes. Evidente que não foi o que aconteceu. Desse processo, saiu politicamente enfraquecido o ministro Luís Adams, da AGU (Advocacia-Geral da União). Adams recebeu a missão de desarmar a bomba. Falhou. Mostrou-se desastrosa, para dizer o mínimo, sua tentativa, às vésperas do julgamento, de tentar afastar o ministro Augusto Nardes, relator das contas do governo, sob o argumento da antecipação de seu voto. Foi como pedir o afastamento do juiz com o jogo em andamento depois de um gol sofrido. Claro que não ia dar certo. Mas o governo ousou ao apresentar a chicana oportunista. O tiro foi desferido no próprio pé. Os demais ministros se solidarizaram, e rejeitaram o pedido do advogado-geral por unanimidade. Para o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, a estratégia ainda produzirá desdobramentos negativos para o Planalto. “(O julgamento das contas no Congresso) terá um fundamento mais político ainda”, afirmou o peemedebista. Se reprovadas as contas, a presidente poderá ser enquadrada na Lei da Ficha Limpa e ensejar uma ação penal, a ser aberta a pedido da Procuradoria-Geral da República, cujo desfecho pode ser o seu afastamento por 180 dias até a conclusão da investigação que pode condená-la por crime de responsabilidade.

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O tema “pedaladas” esquentou a partir do mês de junho, quando o tribunal pediu explicações ao governo sobre as contas do ano passado e emitiu os primeiros sinais de que a nota final do Planalto seria vermelha. Ficou estabelecido 30 dias de prazo para a resposta, esticado por duas vezes. O Planalto tentou desmontar a tese das pedaladas usando como inacreditável justificativa o fato de que os achados da auditoria comandada por Nardes apareceram no balanço de exercícios anteriores a 2014 e não motivaram rejeição às contas de ex-presidentes da República. Além disso, os auxiliares de Dilma tiveram a coragem de insistir na risível questão da insegurança jurídica, alegando que mudanças nas regras do jogo não poderiam valer para avaliar contas vencidas. Não deu certo.

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A tramitação do caso no TCU ocorreu sob forte pressão. Além de Adams, o Planalto mobilizou o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, para atuar na linha de frente. Deputados e senadores da base aliada também entraram em campo. A oposição, por sua vez, escalou seus principais líderes para defender a reprovação das contas de Dilma. E a pressão não foi só política. Houve também mobilização popular. Manifestações em apoio ao relator ocorreram em frente ao tribunal. A assessoria do TCU afirmou terem sido enviadas milhares de mensagens a Nardes por meio eletrônico. A maioria delas em apoio ao trabalho desenvolvido pelo relator, mas houve também ofensas e ameaças ao ministro e seus familiares. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, acionou a Polícia Federal para apurar o caso.

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Ao apresentar seu voto na quarta-feira, Nardes criticou o governo por praticar “uma política expansiva de gastos sem sustentabilidade fiscal e sem a devida transparência”. Afirmou o ministro: “Fica evidenciado que diversos procedimentos adotados ao longo do exercício de 2014 afrontaram de forma significativa, além dos artigos específicos delineados em cada um dos indícios, princípios objetivos e comportamentos preconizados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, caracterizando, dentro de análise técnica, cenário de desgovernança fiscal”. Segundo ele, o governo omitiu débitos da União junto ao Banco do Brasil, ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e ao FGTS.

Repetiu a prática em relação a adiantamentos concedidos pela Caixa para despesas do Bolsa Família, seguro-desemprego e abono salarial, e os valores adiantados pelo FGTS para despesas do Minha Casa, Minha Vida. Foram ainda consideradas irregulares a falta de contingenciamento de despesas discricionárias da União no montante de pelo menos R$ 28,54 bilhões, a inscrição imprópria em restos a pagar de R$ 1,367 bilhão referentes a despesas do Minha Casa Minha Vida e a fixação de cronograma mensal de desembolso para 2014, sem considerar a manifestação do Ministério do Trabalho e Emprego quanto à elevação de despesas primárias obrigatórias, no valor de R$ 9,2 bilhões, e quanto à frustração de receitas primárias do Fundo de Amparo ao Trabalhador, no valor de R$ 5,3 bilhões.

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VIGÍLIA
Acampados em frente ao TCU e mobilizados na Avenida Paulista,
manifestantes comemoraram decisão do TCU

Nos cálculos do relator, o rombo fiscal do governo federal em 2014 chegou a R$ 104 bilhões, somando as pedaladas fiscais, os contingenciamentos que não foram feitos e a abertura de créditos sem autorização do Congresso. Durante o voto, Nardes reafirmou a responsabilidade da presidente sobre as suas contas. O ministro José Múcio, que comandou a pasta das Relações Institucionais durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, defendeu a atuação do TCU. De acordo com ele, a decisão foi técnica, e não política. “Não é uma decisão fácil, mas teve como base um voto calcado no relatório de 14 técnicos do tribunal que se debruçaram sobre o assunto durante um ano”, disse. “As contas estavam irregulares.”

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No julgamento, o advogado-geral da União insistiu que o tribunal analisou situações como as “pedaladas” no passado sem se posicionar pela rejeição, fazendo, no máximo, ressalvas. “É artificioso achar que isso se trata de uma violação à Lei de Responsabilidade Fiscal e à Lei de Diretrizes Orçamentárias. Não se trata”, disse. Adams lembrou a edição de portaria para evitar novas “pedaladas”. O texto proíbe que o Executivo deva a qualquer instituição financeira por mais de cinco dias. Caso ocorra, o órgão contratante deverá cobrir o saldo em 48 horas. Não sensibilizou um ministro sequer. Derrotado, ele afirmou que a nova trincheira passou a ser o Parlamento. “Vou ao Congresso para o debate”, afirmou. Não terá vida fácil. Não pacificado, como planejou Dilma com a reforma ministerial de araque, o Legislativo se transforma cada vez mais em um campo minado para o governo.

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Fotos: Alan Marques/Folhapress; ANDRE DUSEK/ESTADÃO, Alan Marques/Folhapress; Tiago Mazza/Frame/Folhapress


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