A objetividade inclemente do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), aliada a requintadas estratégias – nem sempre republicanas – que visam a manutenção e ampliação de poder, levou a ISTOÉ a retratá-lo em edições passadas como uma versão brasileira de Frank Underwood, protagonista do seriado House of Cards. Na última semana, Cunha voltou a justificar a comparação com o personagem interpretado pelo ator Kevin Spacey, que virou símbolo do jogo bruto e da política desprovida de qualquer escrúpulo. Em uma de suas célebres frases, Underwood assim resumiu a utilidade de seus aliados: “A estrada para o poder é coberta por hipocrisia e baixas. Remorso nunca.” Seguindo ética semelhante à da obra de ficção, Cunha decidiu na semana passada atropelar a Comissão da Reforma Política constituída no início do ano para discutir alterações no sistema político-eleitoral do País. Numa decisão monocrática, submeteu o assunto ao plenário, onde pôde fatiar os temas com o mínimo de debate possível tentando aprová-los de acordo com seus interesses. A primeira vítima do pragmatismo implacável de Cunha foi a sociedade civil, que há décadas discute propostas para uma reforma política. Outro atingido foi o colega de partido Marcelo Castro (PMDB-PI), o relator da reforma, cujo trabalho de quatro meses se esvaiu pelo ralo. Ao correligionário, o presidente da Câmara, bem ao estilo Underwood, limitou seu pedido de desculpas a uma frase publicada numa rede social. “Quero ressaltar que tenho grande apreço pelo Marcelo Castro. Peço desculpas por qualquer constrangimento. Não era essa a intenção.”

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De fato, a questão envolvendo o companheiro de partido nunca foi pessoal. Ele era apenas o cara no lugar errado e na hora errada e tornou-se um obstáculo a ser removido em nome de um objetivo maior. Cunha queria mesmo entrar para a história como o presidente da Câmara capaz de desafiar anos de inércia e votar matérias que alteram o sistema partidário e eleitoral do País como o financiamento privado de campanha, o fim do instituto da reeleição e a cláusula de barreira. Claro, além da possibilidade do aumento de influência e prestígio político, a aprovação de todas essas matérias também atendia às suas conveniências e as de seus aliados mais próximos. Por exemplo, a constitucionalização do financiamento privado, hoje em discussão no STF, é fundamental para quem sempre teve, como ele, as campanhas bancadas majoritariamente por empresas. Já o endurecimento da cláusula de barreira foi colocada em votação por Cunha por conta de uma birra pessoal. Na terça-feira 26, foram os partidos nanicos aliados a peemedebistas de bancadas do Nordeste que impuseram a principal derrota da semana a Cunha: a rejeição do chamado distritão – sistema eleitoral pelo qual vereadores, deputados estaduais e federais são eleitos por voto majoritário. A retaliação do peemedebista foi tentar estabelecer que, para ter direito a fundo partidário e tempo de rádio e TV, os partidos precisariam ter um mínimo de cinco representantes no Congresso, o que atingiria nada menos do que 10 pequenos partidos da Casa. Isso não aconteceu. A cláusula de barreira foi aprovada, contrariando os interesses dos partidos menores, mas com restrições mais brandas. Pelo texto, terão direito a verba pública e tempo de propaganda os partidos que tenham concorrido, com candidatos próprios, à Câmara e eleito pelo menos um representante para qualquer das duas Casas do Congresso, e não cinco, como queria Cunha inicialmente. “Não perdoarei a traição”, vociferou o peemedebista referindo-se à atitude de líderes de partidos nanicos.

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Cunha proferiu a frase após deixar o plenário da Casa na noite de terça-feira 26 completamente arrasado. Àquela altura, por um placar de 267 contra 210, a mudança no sistema eleitoral que elegeria para a Câmara somente os deputados mais votados em seu estado acabava de ser reprovada. Essa regra, se instituída, beneficiaria políticos com carreira consolidada e eleitorado cativo em muitos municípios – como, por exemplo, Eduardo Cunha. No mesmo pacote, o presidente da Câmara viu a rejeição de uma emenda que previa o financiamento privado de campanhas políticas. Na manhã seguinte, porém, tratou de refazer as pontes procurando os aliados um a um.

O passo seguinte revelou boa parte da ousadia de Cunha na execução de suas ideias. Na quarta-feira 27, ele recorreu a um recurso regimental conhecido como emenda aglutinativa – junção de mais de uma proposta parlamentar – para levar de novo ao plenário a possibilidade de financiamento eleitoral por empresas privadas. “O atropelo continua”, reclamou a líder do PCdoB Jandira Feghali (RJ). Os esperneios, porém, não pararam Cunha. Ele saiu da votação com a pecha de autoritário reforçada, mas com uma conquista que agradou em cheio ao PMDB, seu partido. Com 330 votos favoráveis e 141 contrários, foi incluída na Constituição a permissão para que os partidos recebam recursos de empresas. Pela regra aprovada, as doações não podem ser feitas diretamente aos candidatos. Diferentemente do que pode parecer, essa restrição favorece aos doadores, que poderão disfarçar o patrocínio de campanhas de políticos amigos. Para que sejam acolhidas pela Constituição, as emendas aprovadas na semana passada ainda dependem de outra votação pelos deputados, o segundo turno, e repetir o trâmite no Senado. Além da emenda sobre financiamento de campanhas, também foram aceitas pelos deputados o fim da reeleição para presidente, governadores e prefeitos, regra criada em 1997, durante o primeiro mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que conquistou mais um mandato no ano seguinte. Pelo texto apreciado na Câmara, haverá um período de transição. Prefeitos eleitos em 2012 e governadores eleitos em 2014 poderão concorrer novamente em 2016 e 2018, respectivamente.

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O TROCO
Um dia após ser derrotado no plenário da Câmara, Eduardo Cunha
manobrou para aprovar na quarta-feira 27 o financiamento
privado de campanhas por intermédio dos partidos

Em meio à intensa agenda de trabalho, Cunha ainda encontrou tempo para tirar uma foto sorridente ao lado dos militantes do Movimento Brasil Livre, que pede o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Tanta simpatia com os militantes deixou muitos governistas intrigados. Afinal, vale lembrar que, no atual desenrolar da série House of Cards, Underwood está sentado na cadeira de presidente, após movimentar céus e terras em estratagemas políticos. No Brasil, o presidente da Câmara é o terceiro na linha de sucessão. 

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Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO


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