Mandacaru quando flora na seca não é só um sinal de chuva no Sertão. Quando reproduzida nos bordados de renda, a flor da espinhosa planta da caatinga, símbolo de esperança no Nordeste, pode mandar outro sinal: o de que sonhar produz frutos e realizações. Tem sido assim para cerca de 400 rendeiras que há 12 anos viviam essencialmente do Bolsa Família, no interior de Alagoas. Suas flores e tramas rendadas viraram literalmente fonte de renda. A experiência do projeto Olhar do Sertão, comandado pela estilista Martha Medeiros, começa a mudar uma realidade nessa região do sertão nordestino, em Entremontes (AL). A partir de um “cadastro de sonhos” criado para recuperar a auto-estima e a capacidade de ambicionar das mulheres rendeiras, a estilista alagoana incentiva a produtividade em lugares onde a pobreza e a aridez demolem vontades e energia. “Na Casa de Bordados, a gente ensina a fazer renda e a sonhar. Para prosperar na dureza do sertão, sonhar é vital”, diz Martha, famosa pelos luxuosos e magníficos vestidos de renda que encantam celebridades nacionais e internacionais, empresárias e socialites.

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MULHER RENDEIRA
Artesãs cooperativadas trabalham em Entremontes (AL)

A ideia é inverter uma ordem vigente há anos: o projeto “Olhar do Sertão” quer mostrar às rendeiras cooperativadas que os bordados podem ser a principal fonte de sustento das famílias e o benefício do governo, um reforço. O exemplo da renda como negócio organizado, com preços definidos pelo Sebrae, pode ter um efeito até mais transformador: ser uma porta de saída do Bolsa Família para muitas mulheres.

Em localidades marcadas pela tragédia da seca e pela falta de acesso às necessidades básicas, a renda sempre foi um lazer. O prazer de fazer renda é antigo. “Mulher Rendeira”, canção do xaxado brasileiro de autoria atribuída a Lampião, em 1922, já cantava essa tradição. Mas poucas rendeiras olhavam a atividade como um meio de ganhar dinheiro. “No máximo, era uma complementação”, diz Martha, que começou a trabalhar com rendas há cerca de 12 anos.

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Sua ideia de alimentar sonhos nas comunidades funcionou como um combustível para revigorar o motor de ambições, corroído pela miséria. Quando elas se organizam para fazer as flores de renda, agora cada profissional pode receber R$1.200 por 20 flores bordadas no mês, dependendo do tempo que se dedicam à atividade. Rendar uma flor leva um dia de trabalho de oito horas.“Reunimos nossas mulheres na associação e fazemos isso há anos”, diz Martha. “Às vezes são sonhos muito fáceis de realizar.” Devolvendo esperança às rendeiras, acredita a estilista, elas conseguem sair do estado de acomodação e vão à luta para planejar suas realizações.

“Queremos que elas se acostumem a viver com os R$ 1.000 recebidos com o trabalho da renda, fora qualquer outro tipo de ajuda. Muitas não têm esse ânimo”, afirma. O Bolsa Família paga a cada uma delas em torno de R$127 por filho, computando outros benefícios. As rendeiras têm em média seis filhos. Algumas têm 14. Outras raramente têm dois. Considerando o cálculo dos rendimentos por seis filhos, o valor pago pelo governo seria R$762. O projeto incentiva as mulheres a não se contentarem com isso. A meta é mostrar que elas podem empreender e ganhar R$1000, R$1.100 ou R$1.200 só com a renda.

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As rendeiras recebem por flor e folhas rendadas. Os vestidos são confeccionados por junções de flores e folhas. Em média, uma rendeira é remunerada com R$50 por flor. Há rendeiras que fazem 22 flores por mês. Há quem faça duas. Mas a maior parte das 400 profissionais cooperativadas de Entremontes acaba produz em média 10 flores por mês e recebem por isso R$ 500.

O cadastro de ambições é singelo: casar com um vestido de noiva bonito, reformar a casa, estudar e pagar uma faculdade, viajar. “Talvez falte a elas saber que podem realizar um sonho com o dinheiro da renda”. O exemplo do Projeto Olhar do Sertão aponta que o debate em torno Bolsa Família talvez seja mais profundo que a tese recorrente de que as pessoas beneficiadas pelo programa não querem trabalhar. O projeto foca num ponto chave: recobrar ambições destruídas pela pobreza e pela falta de horizontes. “A miséria tira o sonho da pessoa”, diz Martha. “E tira por muito tempo”.

O projeto é amplo. Martha ganhou a adesão de amigos como a empresária Luiza Helena Trajano, dona do Magazine Luiza, e o casal de oftalmologistas Marcelo e Rosana Cunha, entre os apoiadores.“Se eu morrer isso precisa continuar”, afirma. Uma nova sede do projeto Olhar do Sertão está em construção. O local abrigará uma escola de rendas, com salas de aula. Haverá ainda consultório médico, cozinha para ensinar a preparar comida mais saudável com ingredientes de lá, como jerimum, bode e macaxeira. Foram feitos 179 exames de vistas na região para garantir óculos às rendeiras com problemas para enxergar. “Fico muito emocionada com a mudança que o nosso trabalho está fazendo. Pela primeira vez os maridos estão ajudando as mulheres a fazer renda”, diz Martha. “Elas estão ganhando mais que eles e estão sendo respeitadas.”

O maior sonho cadastrado é conhecer São Paulo. Sabendo disso, a estilista organizou uma espécie de premiação para estimular a produtividade. Quem bater a meta de 10 flores por mês durante três meses, ganha uma viagem para São Paulo, com o marido e dois filhos. “Elas precisam ver que o mundo é muito maior que Entremontes”, ensina Martha.

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Fotos: Giba Cusciana, Clive Rose/Getty Images