Nem as rainhas de bateria nem as comissões de frente. O Carnaval carioca de 2015 vai entrar para a história por ter tido um insólito rei da Sapucaí: Teodoro Obiang Mangue, conhecido como Teodorín, filho do ditador da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, há 35 anos no cargo. O herdeiro e vice-presidente de 45 anos divertiu-se como poucos na folia carioca. Alugou dois camarotes na avenida por R$ 120 mil e decorou-os com motivos africanos e as cores de seu país. Aos cerca de 40 convidados, serviu paella, bacalhau e champanhe Dom Pérignon. Antes e depois da festa, relaxava em uma das sete suítes de cobertura reservada para a comitiva no luxuoso hotel Copacabana Palace, a um custo de R$ 77 mil a diária. Também gastou R$ 79 mil em um regabofe no restaurante de frutos do mar Marius, um dos mais caros do Rio.

CARNAVAL-01-IE-2360.jpg
DINHEIRO DE QUEM?
O luxuoso desfile custou R$ 10 milhões. A Guiné Equatorial diz que os
recursos são de patrocinadores culturais, mas a Beija-Flor afirma que
os financiadores são empreiteiras brasileiras com interesses no país

CARNAVAL-02-IE-2360.jpg

O ápice da estadia do clã no Brasil aconteceu na Quarta-Feira de Cinzas, quando a Beija-Flor sagrou-se campeã do Grupo Especial. O enredo da escola era justamente uma homenagem à terra natal dele. Por trás da festa que sacudia Nilópolis, porém, estava a polêmica causada pelos R$ 10 milhões que teriam sido doados à agremiação pela Guiné – uma ditadura sangrenta que desrespeita direitos humanos, massacra opositores políticos e deixa seu povo à míngua, apesar de ser o terceiro maior produtor de petróleo da África.

Divulgar o país no Brasil combina com as medidas adotadas nos últimos anos pelo governo de Obiang para melhorar sua péssima reputação internacional. A Guiné Equatorial financiou um prêmio para a promoção da ciência em parceria com a Unesco, da Organização das Nações Unidas, em 2012, o que suscitou duras críticas de organismos de defesa dos direitos humanos. No mesmo ano, a Justiça francesa expediu um pedido de prisão de Teodorín por lavagem de dinheiro. Ele também é investigado por esse crime no Brasil, pelo Ministério Público Federal, desde 2013, em colaboração com a Justiça dos EUA e da França.

IEpag58_Carnaval-1.jpg

Não é a primeira vez que o país é celebrado no Carnaval brasileiro. Em 2013, foi o bloco baiano Ile Aiyê que homenageou a Guiné. Desta vez, a oportunidade para a nação africana apareceu após a Beija-Flor amargar o sétimo lugar no ano passado, com um enredo sobre José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, da Globo. Para 2015, a escola fechou um acordo com Obiang: colocaria a Guiné em destaque em troca dos R$ 10 milhões, valor bem acima dos R$ 5 milhões normalmente gastos pelas demais escolas.

A origem dos recursos que financiou a Beija-Flor está cercada de controvérsias. O governo da Guiné nega ter dado diretamente esse dinheiro; disse que seriam de patrocinadores culturais locais. A escola de Nilópolis afirma que a verba saiu de empreiteiras brasileiras que fazem ou fizeram negócios no país africano. Três foram citadas: Odebrecht, Queiroz Galvão e ARG. “São mais empresas, essas são as que eu sei”, diz Fran-Sérgio Oliveira, um dos carnavalescos da agremiação. As empreiteiras, por sua vez, negam. Os negócios entre Brasil e Guiné Equatorial floresceram nos anos petistas. O fluxo comercial saltou de US$ 7.7 milhões em 2002 para US$ 1,2 bilhão em 2014.Há tempos patrocínios assim são comuns. Tudo começou com cervejarias bancando a Império Serrano em 1985. Logo depois vieram forças políticas, com financiamento de Estados e de outros países. “O caso da Beija-Flor choca porque é uma nação pobre tirando recursos que poderiam ser do povo para demonstrar uma falsa realidade”, diz a pesquisadora de Carnaval, Rachel Valença, para quem o dinheiro passou a ser protagonista em vez dos valores autênticos do samba, como as alas de passistas, que perderam importância. “Hoje ganha quem tem mais recursos”, diz. A antropóloga Alba Zaluar, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), defende que, para evitar situações como essa, os critérios de avaliação devem ser revistos: “É muito luxuoso e impressiona, mas o samba-enredo é uma porcaria, apresenta uma África estereotipada. Por isso, os quesitos não podem ter o mesmo peso”, afirma.

IEpag58_Carnaval-2.jpg

Não é de hoje que dinheiro sujo abastece o Carnaval carioca. Afinal, as escolas de samba cresceram bancadas pelos bicheiros. Mas eles não costumavam interferir na criatividade dos carnavalescos. Já a Beija-Flor, acatou até mudanças na letra da música impostas pelo ditador Obiang – ele queria que o nome completo do país fosse citado para evitar confusões entre Guiné, Guiné Bissau e Guiné Equatorial –, medida que não pegou bem nem entre os membros da escola de Nilópolis.

Fotos: Marcia Foletto; Marco Antônio Cavalcanti/Riotur