Inspirados nas recomendações que levam milhares de pessoas ao cardiologista ou ao clínico para conferir, anualmente, como está a saúde do coração, neurologistas e pesquisadores do cérebro desenvolveram um corpo de testes destinado a proteger a saúde cerebral e preservar funções cognitivas como a memória, a atenção, a capacidade de se concentrar e o tempo de reação. Essa nova abordagem, nutrida em centros de pesquisa e universidades como Pittsburgh, Yale e Harvard (EUA), e Melbourne, na Austrália, começa a se disseminar pelo mundo. “Esse conjunto de testes identifica a presença de alterações cognitivas. Alguns também podem ser usados para treinar o cérebro a superá-las”, disse à ISTOÉ David Darby, que dirige o Instituto Florey de Neurociências e Saúde Mental da Universidade de Melbourne. Darby é uma referência mundial no estudo do impacto das mudanças neurológicas no comportamento e um pioneiro no desenvolvimento dos jogos computadorizados para avaliar as funções cerebrais.

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Iniciativas com esse direcionamento proliferam na Europa, nos EUA e no Brasil. Centros de memória antes frequentados somente por idosos com demência ou Alzheimer agora começam a ser visitados também por uma população mais jovem interessada em preservar e melhorar a sua performance cerebral. “Recebemos desde atletas que sofreram concussão cerebral até jovens com problemas de concentração que querem saber o que a ciência oferece a eles”, diz a neuropsicóloga Mariana Assed, do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde está sendo montado um centro de avaliação em moldes semelhantes ao da Universidade de Melbourne. “Estamos reunindo jogos e outros testes para melhorar o diagnóstico de alterações cognitivas e psiquiátricas”, explica Mariana.

Um dos alvos do check-up cerebral é ampliar o acesso à chamada reserva cognitiva. Trata-se da capacidade de o cérebro buscar novos caminhos para usar seus recursos. Na prática, é a agilidade para acionar uma via alternativa e seguir em frente se o caminho principal até uma informação – como uma palavra que teima em desaparecer no meio da conversa – encontra-se bloqueado ou desativado. Estudos apontam que pessoas com maior poupança cognitiva contornam melhor suas deficiências. Uma dessas constatações foi publicada pela revista “Neurobiology”. Uma investigação de cientistas americanos, italianos e sérvios ligados à Fundação Kessler concluiu que a existência de uma reserva mais robusta opõe maior resistência à progressão das perdas cognitivas até mesmo em pacientes com doenças degenerativas, como a esclerose múltipla.

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Em São Paulo, outro serviço de check-up cerebral, o Centro Neurability de Avaliação e Treinamento da Performance Cerebral, atua de acordo com os mais recentes achados da neurociência. Inaugurado há um ano, o local reúne psicólogos, terapeutas, neuropsicólogos, médicos do esporte e neurologistas. “Está provado que o cérebro pode ser reconfigurado a partir de suas reservas cognitivas. É nessa fronteira da ciência que estamos trabalhando”, diz o neurologista Jorge Pagura, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e um dos integrantes do grupo de profissionais do centro.

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Ali têm sido examinados, por exemplo, atletas do futebol feminino, jogadores de vôlei e boxe e indivíduos com queixas leves ou mais complexas de memória. Foi o que aconteceu com Luiz Carlos Moraes Rego, 81 anos, de São Paulo. Especialista em engenharia automotiva pela Universidade de Michigan (EUA) e professor de Inovação da Fundação Getulio Vargas, há um ano e meio ele se aposentou e trocou as aulas pela atividade como palestrante, consultor e articulista da revista “Inovação”. “Comecei a ficar preocupado com os esquecimentos e a dificuldade de me comunicar”, diz. Após se submeter a uma bateria de testes que confirmaram o problema, fez 13 sessões de treinamento para melhorar o uso de seu patrimônio cognitivo. “Foi um excelente investimento. Parece que religuei o cérebro”, diz.

O publicitário Fauze Jibran, 40 anos, submeteu-se ao check-up por curiosidade e ficou surpreso ao saber que sua memória de trabalho – guarda, por exemplo, nomes de pessoas a quem você acabou de ser apresentado –, estava abaixo do normal. “Vimos que a ansiedade estava me prejudicando”, conta. Ele foi orientado a modificar sua rotina para controlar o problema. “As mudanças no estilo de vida me devolveram a agilidade mental.”

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PREVENÇÃO
O neurologista Okamoto, do Hospital Albert Einstein, planeja o lançamento
de um pacote de exames para avaliar pessoas saudáveis

No laboratório do neurocientista Michael Collins, da Universidade de Pittsburgh (EUA), concentra-se a vanguarda dos estudos e tratamentos da concussão cerebral, o trauma provocado por choques ou pancadas que causam impacto na cabeça. Suas pesquisas mostram que resultados normais dos exames de imagem não são suficientes para descartar uma avaliação das funções cerebrais de pessoas que bateram a cabeça. “Treinamentos específicos melhoram esse quadro”, assegura Collins.

A designer Karoline Gebrael, 32 anos, de São Paulo, beneficiou-se dessa nova forma de tratar sequelas. Há um ano, ela sofreu um acidente de carro, mas aparentemente não teve sequelas. Com o tempo, passou a ter dores de cabeça constantes, cansaço e dificuldade para se concentrar no trabalho. “Meu desempenho estava abaixo do que sei que posso”, diz. Karoline submeteu-se aos testes de avaliação neurocognitiva. “O cérebro dela ainda se ressentia do impacto sofrido há tanto tempo”, diz o médico Ricardo Eid, coordenador do Ambulatório de Concussão da Universidade Federal de São Paulo e um dos idealizadores do Centro Neurability.

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Por ser esse um campo do conhecimento ainda em construção, um dos questionamentos é se o check-up pode ser um recurso para melhorar a identificação de pessoas com declínio cognitivo leve ou até sem sintomas que indiquem o risco de demência e Alzheimer. A prática mostra que sim. “Nos casos em que houver um prejuízo mais acentuado da memória e de outras funções a indicação é realizar exames mais complexos para avaliar sua condição neurológica”, afirma o pesquisador Ivan Okamoto, da Universidade Federal de São Paulo e diretor do Centro do Cérebro e Memória do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Ele vê com bons olhos o uso dos testes para analisar as funções cerebrais, ajudando, dessa maneira, na detecção de eventuais problemas. “Ainda que seja tênue a linha divisória entre as perdas próprias do envelhecimento e quadros iniciais de demência, sabemos que intervir precocemente pode retardar os sinais das doenças degenerativas”, afirma.

Okamoto chama a atenção para o fato de que é urgente aumentar o acesso ao diagnóstico no País. “Aqui, apenas 11% das pessoas com a doença de Alzheimer estão em tratamento e estima-se que 90% dos pacientes não tenham diagnóstico”, destaca. O médico planeja lançar nos próximos meses um pacote de exames para o público saudável com foco na prevenção.

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EXAME
A neuropsicóloga Mariana Assed (na foto, atrás) usou testes 3D para
livrar a designer Karoline da dor de cabeça e da falta de atenção

A aplicação dos testes (leia mais sobre eles no quadro ao lado) encontra suporte nos diversos estudos que buscam decifrar como os nossos neurônios se conectam uns aos outros e quais estímulos reforçam ou enfraquecem essas ligações. Entre eles estão os que avaliam testes neurocognitivos de computador e os chamados neurogames. Publicada na revista “Nature”, uma pesquisa recente feita com 40 pessoas com idade entre 60 e 85 anos mostrou, por exemplo, a eficiência de um jogo desenvolvido pela Universidade da Califórnia, o NeuroRacer. Ele é utilizado para incentivar a capacidade de executar diversas tarefas ao mesmo tempo, algo cada vez mais comum. Nele, o jogador pilota um carro por uma região montanhosa por meio de um joystick. Ao mesmo tempo, é instruído a apertar um botão apenas quando um sinal específico aparecer na tela. “O estudo forneceu uma evidência poderosa de como a aplicação personalizada de um videogame pode ser usada para investigar as habilidades cerebrais e, ao mesmo tempo, como ferramenta para a melhoria cognitiva”, diz o médico Moacir Costa Neto, de Brasília. Ele foi aos EUA e à Austrália conhecer os novos recursos contra as perdas neurocognitivas.

Outro trabalho, feito por cientistas do Instituto Max Planck, na Alemanha, e publicado pela revista “Molecular Psychiatry”, investigou os efeitos de jogos de computador 3D sobre o cérebro de um grupo de adultos que jogaram, por dois meses e durante 30 minutos por dia, o game “Super Mario 64”. Na comparação com indivíduos que não passaram pela experiência, o que se viu foi um aumento nas dimensões de diversas áreas cerebrais, como o córtex pré-frontal (ligado à tomada de decisões e planejamento) e regiões associadas à formação da memória e aos movimentos finos das mãos.

Na opinião do médico Paulo Bertolucci, chefe da Neurologia Comportamental da Universidade Federal de São Paulo, a popularização dos check-ups e dos jogos para treinar as capacidades cerebrais é positiva. “O cérebro precisa ser tão bem cuidado quanto o coração”, afirma. Ele alerta, porém, para a necessidade de usar os recursos de forma individualizada. “Jogos online ajudam a melhorar alguma coisa, mas é necessário fazer essa atividade de modo orientado e com acompanhamento”, recomenda.

Na Austrália, o neurocientista Darby está justamente monitorando uma população de voluntários para afiar os critérios a serem usados nas avaliações feitas pela internet. Hoje, quem acessa sites como o Lumosity, por exemplo, será encaixado em padrões diagnósticos bastante abrangentes. O que Darby quer é criar condições para que o resultado obtido pelo internauta seja o mais específico possível. “E assim será possível ampliar o uso dessa ferramenta e reduzir a chance de que ela deixe passar variações que indiquem algo mais grave na saúde do cérebro”, diz Darby.

Fotos: Pedro Dias, Rafael Hupsel – Ag. Istoé, Airam Asil