A “contabilidade criativa” do governo Dilma Rousseff chegou aos programas sociais. Documentos obtidos com exclusividade por ISTOÉ revelam que, para simular uma economia de gastos públicos, o Tesouro decidiu reter recursos destinados à Previdência Social (INSS), ao Seguro-Desemprego, ao Abono Salarial (PIS) e até ao programa Bolsa Família. A prática começou em meados do ano passado e se acentuou este ano. Entre janeiro e junho, foram represados ao menos R$ 9,8 bilhões, valor equivalente a 57% do superávit de R$ 17,2 bilhões registrado no primeiro semestre. Economistas consultados pela reportagem alertam que, sem a manobra, o resultado primário seria de R$ 5,2 bilhões. “É muito preocupante, considerando que outros R$ 10,5 bilhões foram obtidos também manobrando dividendos de estatais”, diz Felipe Salto, da Consultoria Tendências. “Sem isso, teríamos déficit.”

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ALERTA
Em documento encaminhado à Câmara de Arbitragem
da Advocacia- Geral da União (AGU), a Caixa menciona os
repasses de recursos insuficientes para o programa Bolsa Família

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Conhecida como “pedalada fiscal”, a manobra inclui rearranjos dos calendários de liberação dos recursos com adiamento por dias ou meses. Em vez de executar o orçamento de cada programa de forma integral, o Tesouro transfere só uma parte, deixa fechar o mês e paga o resto no mês seguinte, transferindo menos do que o devido e empurrando a conta para a frente, como a pedalada de uma bicicleta. “Trata-se de maquiagem das contas públicas para cumprir a meta de superávit fiscal”, avalia Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas. Ele se diz surpreso com o avanço do governo sobre programas sociais. “Sabíamos do atraso no pagamento de serviços e obras. É lamentável”, afirma.

Sem dinheiro do Tesouro, quem paga a conta são os bancos públicos e privados. Preocupados, eles recorreram à Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), que já notificou o Ministério da Fazenda duas vezes este ano, primeiro em 5 de março e depois em 26 de maio. No caso do INSS, existe um calendário de data-base para o pagamento do benefício. O recurso precisa entrar na véspera da liberação de cada lote, mas isso não está acontecendo. O Banco do Brasil, por exemplo, teve de pagar com recursos próprios mais de R$ 700 milhões do INSS entre fevereiro e maio. O Bradesco foi obrigado a desembolsar mais de R$ 600 milhões. Itaú e Santander vivem situação semelhante.
A Caixa Econômica Federal tem bancado a conta mais pesada. Embora as transferências, segundo informou a Caixa à ISTOÉ, hoje estejam normalizadas, durante os seis primeiros meses do ano o governo reteve repasses de cerca de R$ 8,4 bilhões em recursos do Bolsa Família, Seguro-Desemprego, Abono Salarial e INSS. Somado ao que segurou no segundo semestre de 2013, o valor retido chegou a R$ 19,5 bilhões. Entre outubro e junho, foram represados pelo Tesouro cerca de R$ 2,6 bilhões. De agosto a maio, a CEF cobriu R$ 12,1 bilhões do Seguro-Desemprego.

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MANIPULAÇÃO
Nos primeiros seis meses do ano, o governo represou cerca de R$ 8,4 bilhões
em recursos do Bolsa Família, Seguro-Desemprego, Abono Salarial e INSS

Para conseguir regularizar os repasses, a CEF recorreu a uma Câmara de Arbitragem da Advocacia-Geral da União (AGU). No ofício 18/2014 de 14 de julho, a CEF menciona os repasses realizados de “forma intempestiva e em volume insuficiente”. No mesmo documento, reiterou seu compromisso com as políticas públicas do governo. Uma sub-cláusula oitava do contrato assinado com o Ministério do Desenvolvimento Social garante à instituição financeira o direito de suspender o serviço até que o fluxo financeiro seja normalizado. Mas, para garantir a execução da principal bandeira social do PT, a CEF descartou completamente essa hipótese. Lembrou ainda, no ofício, caso recente em que “boatos midiáticos sobre o não pagamento do Bolsa Família foram propagados, gerando temores em grande parte da população e causando imensos afluxos de pessoas nas agências da Caixa”.

O caso ocorreu em maio. Até então, o saldo do programa, hoje positivo segundo informou a Caixa, havia ficado negativo por quatro meses em 2012. Não há qualquer risco de interrupção de pagamentos aos beneficiários do Bolsa Família. Mas, com exceção de uma ocorrência pontual em dezembro de 2010, a CEF nunca havia deixado de receber integralmente os recursos nos dois mandatos do presidente Lula. Para economistas ouvidos por ISTOÉ, a prática sugere que a situação fiscal do governo é pior do que se pensava. Em recente audiência na AGU, um representante da CEF relatou a preocupação dos conselheiros do banco em resolver a situação. Outro representante do Ministério do Trabalho culpou o Tesouro pelo “retardo dos repasses”, segundo ata de audiência obtida por ISTOÉ.

Procurada pela reportagem, a CEF negou qualquer problema. Por meio de nota, disse que os repasses “estão dentro da normalidade” e que o envio do caso à AGU seria apenas para “dirimir dúvidas”. Por meio de nota, o Ministério da Fazenda também negou “qualquer anormalidade”, ressaltando que o saldo nas contas dos programas este mês está positivo. O Ministério de Desenvolvimento Social repetiu a versão oficial.