Juiz federal inova com decisõesbaseadas nas condições sociais,e não apenas no que diz o texto dasleis: Só princípios não são suficientes

Uma verdadeira revolução, ainda silenciosa, vem sendo alimentada na Justiça Federal. Um dos expoentes desse movimento é o juiz David Diniz Dantas, de Ribeirão Preto, 47 anos, que tem dedicado seu tempo a fazer o que o comum dos mortais nunca imaginou ser possível: tornar a Justiça mais humana. Os que estão acostumados à inevitabilidade do ditado “dura lex sed lex” (a lei é dura, mas é a lei, em latim), hoje respiram aliviados com decisões que estabeleceram uma nova visão do que deve ser a Justiça: uma defensora dos princípios morais que a Constituição e o bom senso determinaram como parâmetros para a vida.

Um exemplo do tipo de sentença do juiz aconteceu com M, menina de um ano e meio, que sofre de doença raríssima e que, sem um remédio importado não disponível na rede pública, morreria. Pelo que estabelece a lei, a criança não teria direito ao medicamento gratuito – mas decisão da Justiça Federal a contemplou com o que, em essência, foi considerado direito à vida. Uma decisão que, no seu parecer, incluiu a subjetivíssima declaração do juiz Dantas, de que a demanda fazia “partir o coração”. Nada mais distante do positivismo e da tradição iluminista que norteiam a aplicação das leis no Brasil desde o século XIX.

Outro caso, foi o do funcionário do extinto Instituto Brasileiro do Café (IBC) em Beirute, que teve sua casa destruída por uma bomba na guerra civil do Líbano. Pela lei brasileira, por não se tratar de ato sofrido em território nacional, o funcionário não teria direito a indenização. Invocado o princípio da solidariedade, obrigou-se a União a pagar pelos danos. Afinal, se o País se beneficiava dos frutos do trabalho do funcionário também deveria ser solidário com ele nos prejuízos. Dantas deu entrevista a ISTOÉ na semana em que lançava o livro Interpretação constitucional no pós-positivismo.

Max G Pinto

O Judiciário é um poder carente,já que não foi
escolhido pela maioria, democraticamente. Essa legitimação
vem do exercício, da atuação

 

Max G Pinto

Não adianta incluir na Constituição princípios lindos de justiça social, de proteção aos pobres, se continuo aplicando o legalismo formal

ISTOÉ – Como foi que o sr. começou a julgar dentro dessa ótica mais humanista?
David Diniz Dantas

A partir da constatação da insuficiência de um modelo que é a perspectiva positivista, formalista. Vemos diariamente insuficiências da lei na sua literalidade para solucionar os casos judiciais. Casos rotineiros, como os da Previdência Social, de ações de simples despejo, para as quais o texto da lei dá solução inadequada se levarmos em conta as concepções de Justiça que se tem na sociedade. Como o despejo de um senhor de 90 anos de idade. Realmente, ele não pagara o aluguel, e todos os requisitos legais para ele ser despejado estavam presentes. Mas pergunta-se: será que o juiz precisa mesmo determinar o despejo? Temos princípios morais que protegem esse senhor, que são a proteção ao idoso, o direito à moradia. Portanto, o julgador pode analisar essa questão à luz desses princípios morais para fazer um julgamento que tenha muito maior poder de persuasão e aceitação pela sociedade do que a aplicação do rigor.

ISTOÉ – Há mais magistrados tomando decisões com base nesses princípios? Seria uma tendência?
David Diniz Dantas

Eu não diria que é tendência, mas sim uma verdadeira necessidade atual, de o Direito, a Justiça, o Judiciário responderem a questões de complexidade social. Temos uma complexidade social que não se adequa ao nosso sistema de leis estratificado. Os casos não conseguem receber uma decisão social adequada. Então, ocorre que os juízes federais, que são os que aplicam eminentemente a Constituição – que incorpora princípios morais, como o de igualdade, de solidariedade, etc –, tendem a encarar os casos sob o aspecto principiológico.

ISTOÉ – E qual é a diferença entre o princípio e a regra escrita?
David Diniz Dantas

A regra, o texto da lei, por exemplo, diz que o limite mínimo de idade
para a aposentadoria é 65 anos, mas o demandante tem 59 anos, então ele não
tem direito. Já o princípio permite fazer essa ponderação, um balanceamento da situação à luz dos princípios, em oposição à norma do tudo ou nada da lei. Tenho
um arsenal argumentativo muito maior com os princípios. Os juízes federais são
os que atualmente mais têm usado essas possibilidades de completar o direito
com amplitude.

ISTOÉ – Como as instâncias superiores recebem essas decisões?
David Diniz Dantas

Estão sendo aceitas. Várias decisões embasadas em princípios morais têm sido acatadas e o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) se mostra sensível a isso. Hoje, inclusive, há uma experiência pioneira na Escola de Magistratura Federal aqui de São Paulo, que é o curso de filosofia para juízes. O tema do curso é o melhor possível: Justiça. Segundo um autor americano, a filosofia é o prólogo de todas as decisões judiciais. Por mais singela que uma decisão judicial seja, há uma concepção filosófica por trás dela. Seja uma concepção conservadora, formalista, seja uma concepção progressista, democrática que vai ser apresentada. Enfim, sem uma concepção filosófica não temos decisões judiciais efetivamente justas.

ISTOÉ – Por que a filosofia?
David Diniz Dantas

Porque ela me permite discutir o que é importante no caso que tenho diante de mim. O que o Direito exige de mim nesse caso? Eu não tenho que saber, para julgar, só o que o texto da lei estabelece, mas algo acima disso: o que o Direito exige? O caso que eu tenho de julgar precisa corresponder a uma concepção de justiça minha, subjetiva, individual, ser algo que a sociedade olhe e compreenda.

ISTOÉ – Nos 20 anos de magistratura que o sr. tem, o que o despertou para esse enfoque?
David Diniz Dantas

As injustiças da lei. Casos como aquele em que a lei diz que para a pessoa ter um benefício previdenciário tem que ter ou mais de 65 anos de idade ou ser inválido. Houve o caso de uma pessoa que sempre trabalhou no campo, desde os sete anos, sem carteira assinada, e que aos 59 anos veio requerer a aposentadoria. Era tecnicamente idoso, visivelmente idoso, e o princípio que devia estar por trás da decisão é a proteção ao idoso. Ora, se eu aplicasse a lei, julgaria improcedente o pedido de um homem de 60 anos, que aparentava mais de 80 e vivia da pensão da mãe, de 94. A lei me impede de julgar esses casos com justiça. Casos como o do ancião ameaçado de despejo, mostraram a insuficiência e a incompletude do modelo legal. Tudo isso nos leva à conclusão de que as pessoas têm direitos morais que precisam ser considerados pelos nossos governos

ISTOÉ – Mas os governos sempre dizem que têm as mãos atadas pelas leis…
David Diniz Dantas

Mas se os governos não consideram os direitos morais das pessoas, os juízes federais, sobretudo, têm o dever de reconhecê-los. Isso leva a duas situações na hora de aplicar os direitos morais: uma situação em que eu não tenho a lei, ou em que a solução que a lei mostra vai se chocar com algumas idéias de justiça, como solidariedade, proteção aos pobres ou desigualdade social.

ISTOÉ – O sr. já julgou algum caso na área criminal?
David Diniz Dantas

Sim. Uma professora da Universidade de São Paulo acusada de falsidade ideológica. Ela não poderia ter recebido uma bolsa para a qual se habilitara – uma questão envolvendo a burocracia da USP, especificamente um problema no preenchimento de formulários. Um professor da universidade encaminhou ao Ministério Público Federal cópia do processo, e o Ministério, tecnicamente, denunciou criminalmente a professora por crimes federais. A USP tratou o caso como mera questão burocrática; o Ministério Público, como uma questão legal do ponto de vista formal. O que a Justiça Federal pôde fazer a essa professora foi tratar seu assunto como uma questão de Justiça. Porque é assim que entendo o Direito.

ISTOÉ – E o que aconteceu com ela?
David Diniz Dantas

A partir da constatação de que o Direito é uma mediação entre o poder e a cidadania, funcionando como amortecedor, eu absolvi a professora por falta de crime. Uma absolvição muito forte, não aquela coisa morna de falta de provas.

ISTOÉ – Se a lei não resolve os problemas, não seria o caso de mudar a lei?
David Diniz Dantas

Sempre vai ser necessário julgar de olho nos princípios, pois a legislação não consegue acompanhar a complexidade social. Os princípios sempre vão ter que iluminar a legislação. Mesmo uma lei nova tem que se submeter aos princípios morais e constitucionais. É importante ressaltar, ainda, a necessidade da legitimação política da Justiça.

ISTOÉ – O que seria essa legitimação?
David Diniz Dantas

A idéia é que nós só construímos uma nação se tivermos uma comunidade de princípios. É diferente da comunidade ocasional, circunstancial, em que cada um procura o bem para si mesmo e oportunamente se alia a outros. Como nós, juízes, podemos contribuir para essa comunidade de princípios? Exatamente trazendo para o discurso judicial essas questões. Assumo então a postura de levar a sério o texto constitucional. Não adianta incluir na Constituição princípios lindos de justiça social, dignidade da pessoa humana, proteção aos pobres, solidariedade, se eu não os concretizo, se não os trago para o discurso judicial, se continuo aplicando o legalismo formal. À medida que trago ao discurso judicial essas questões e as enfrento, e a sociedade percebe que os juízes julgam seus processos a partir de valores que ela compartilha, aumenta a legitimação política do Judiciário, que é um poder carente, já que não foi escolhido pela maioria, democraticamente. Essa legitimação vem do exercício, da atuação.

ISTOÉ – O sr. fala muito da concepção moral. De que moral estamos falando?
David Diniz Dantas

Quando falo na concepção do Direito conectado a uma concepção
moral, me refiro não àquela moral que inibe o lado lúdico da sociedade, que
inibe as pessoas do prazer sexual, por exemplo. Nem na moral de uma dimensão sobre-humana, formada por princípios só possíveis aos santos e aos grandes heróis. A moral, aqui, está ligada ao ponto de vista, ao outro, à consideração
de outros interesses que não os meus. Se eu tenho um caso para julgar, o ponto
de vista moral me faz considerar todos os interesses relevantes naquele caso, mesmo que não sejam os meus, e às vezes nem os das partes envolvidas diretamente no processo.

ISTOÉ – O sr. poderia exemplificar?
David Diniz Dantas

Vamos considerar uma questão que envolva o aborto. Ela jamais poderá ser analisada exclusivamente pelo ponto de vista legal. A lei prevê que é crime, pronto. Ora, qual é o ponto de vista moral? É a necessidade de considerar a questão dentro de uma grande amplitude de interesses: o que as mulheres pensam sobre o assunto? O que os religiosos em suas diversas visões pensam? O que a Saúde vai me dizer sobre isso? O ponto de vista moral exige um leque de abertura ao diálogo multidisciplinar e que não se dê ao ponto de vista do Direito um locus privilegiado, de impor e dizer: a solução é essa. Isso não satisfaz.

ISTOÉ – O sr. acha que essas mudanças que beneficiam a sociedade são percebidas pela população?
David Diniz Dantas

Se você perguntar às pessoas em geral o que o prefeito deve fazer, o que o presidente pode fazer, elas vão dizer que ele podia fazer uma lei para isso, outra para melhorar aquilo, que deveria fazer mais escolas, etc. Se perguntar a elas o que os juízes devem fazer, vai pairar uma incógnita. Ninguém sabe. No máximo, vão falar que a Justiça deveria ser mais rápida, o que é apenas funcional.

ISTOÉ – Existe uma forma de acabar com esse distanciamento entre a sociedade e o Judiciário?
David Diniz Dantas

Quando se fala em reformar o Judiciário, há propostas interessantes, de procedimentos mais rápidos e tal, mas há outro lado interessante de que pouco se fala, que é sobre a natureza das decisões. Precisamos de decisões que façam sentido ao cidadão. As pessoas em sua vida privada normalmente cumprem seus deveres, mas percebemos, principalmente em campanhas políticas, que se prometem coisas que não se cumprem. Há um duplo padrão ético. No momento em que nós juízes decidirmos questões por uma pauta de postura ética, por valores e teorias políticas e morais, nos aproximaremos da sociedade. Temos que ter uma Justiça rápida, democrática e com justificações aceitas pela sociedade como razoáveis. Caso contrário, vem aquela imagem do juiz que pega a solução em um cesto, num varal. Quando julgamos um caso como esse do ancião despejado ou do que pedia uma pensão, precisamos aplicar o construtivismo ético. Ou seja: a decisão não está pronta no texto da lei, eu vou construir essa decisão. O texto da lei é só meu ponto de partida.

ISTOÉ – Mas essa decisão não corre o risco de ser considerada política?
David Diniz Dantas

Tenho uma tese de que a Constituição é a teoria moral e política que sustenta o texto constitucional, não um mero pedaço de papel. Não adianta falar em igualdade, sem uma teoria sobre o que é a igualdade. Isso serve para todos os preceitos. O sustentáculo da Constituição é uma teoria moral e política, porque impõe uma dinâmica que se adapta à questão das leis. O juiz tem que ter, sim,
uma atuação política, mas política em que sentido? Não no sentido partidário, mas no de alcance das decisões. Quando, num caso envolvendo a Agência Nacional
de Energia Elétrica (Aneel) e a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) sobre
a abrangência da tarifa social, concedi uma liminar, ela beneficiou milhões de pessoas que precisavam dessa tarifa social. Nesse caso, o alcance político dessas decisões é o que aparece.